DISCUSSÃO
Nos últimos anos, a incidência de PBi na área de referenciação local do nosso Hospital tem variado entre 1,19 e 3,54:1.000 nados-vivos, replicando assim a experiência de outras instituições1. Verifica-se um predomínio de crianças do sexo masculino numa relação de 2:1, sendo a frequência de bilateralidade (54%) ligeiramente superior ao que é habitualmente descrito1,3,4,9,10.
A idade da primeira observação (mediana 16±20dias) encontra-se dentro do recomendado para início de tratamento do PBi, preferencialmente nos primeiros 30 dias.
A maior parte dos doentes estudados apresenta atualmente idades acima dos 4 anos, com um tempo de seguimento médio entre 2-9 anos, pelo que todos os doentes progrediram para além da idade da marcha, o que permite aos autores concluírem que não ocorreu qualquer diagnóstico tardio de DDA.
O tratamento do PBi foi adequado, uma vez que foram aplicados 6±2 gessos seriados segundo o Método de Ponseti1,3,4,9,10. O tempo de utilização de botas de Dennis-Browne foi em média 3,5 anos, o que está de acordo com as recomendações feitas por muitos autores, mas é inferior aos 4-5 anos mais recentemente preconizados10. A deformidade do PBi recidivou em 26,6% dos pés tratados, com necessidade cirúrgica adicional, não articular, em 20% dos pés, o que está de acordo com a experiência reportada por diversos autores3,9,10.
O Score Pirani correlacionou-se com o número de gessos e com a necessidade de tenotomia nos doentes com PBi. A recidiva do PBi teve relação com a existência de tratamento prévio e com a necessidade de cirurgia.
Nos doentes estudados, a incidência de DDA foi de 3,4%, encontrando-se dentro do descrito para a população em geral (0,1-8%)1. Concluímos assim que, na nossa população, o PBi não constitui assim um fator de risco para DDA, com incidências sobreponíveis à restante população.
Relativamente aos 6 casos de DDA descritos, há que realçar que nenhum foi detetado tardiamente. Além disso, apenas 2 doentes tiveram necessidade de tratamento com tala de Pavlik, tendo evoluído satisfatoriamente. Os restantes 4 casos diagnosticados apresentaram ancas imaturas, que evoluíram para a normalidade.
Apesar do PBi e da DDA serem patologias frequentes em ortopedia pediátrica, existem poucos casos relatados de doentes que apresentem simultaneamente as duas doenças e nenhum estudo conseguiu calcular a verdadeira incidência de ambas as condições em simultâneo, ou a existência de uma relação causa-efeito.
Alguns estudos revelaram que a incidência de DDA em doentes com PBi pode variar entre 0,57%11-15,69%12 (Tabela 6). Do descrito na literatura, apenas 5 estudos sugeriram uma possível relação entre PBi e DDA6,8,12-14. Com a taxa mais elevada, Carney et al12 reportam 8 casos de DDA diagnosticados em radiografias da bacia aos 4 meses de idade, em 51 doentes com PBi, sugerindo uma associação entre o PBi e DDA. Canavese et al8 identificaram 2 doentes que desenvolveram DDA em 26 com PBi, sugerindo mesmo uma relação possível de causa-efeito entre o tratamento do PBi pelo Método de Ponseti e o desenvolvimento de DDA, reforçando que o seu estudo foi o primeiro realizado com o tratamento segundo Ponseti instaurado e uma vez que ambos os doentes realizaram ecografia às 6 semanas que não apresentava alterações. Contudo, a casuísticas apresentadas por estes autores são relativamente pequenas e carecem de explicações fisiopatológicas para essa hipótese. Já Perry et al6 indicaram uma incidência de DDA em doentes com PBi de 7:119, 45 vezes superior à da população em geral. Estes autores hipotetizaram que os doentes com PBi e DDA podem ter uma síndrome não diagnosticada, tornando os resultados da associação das duas patologias discutíveis. Com uma amostra maior, Zhao et al14 revelaram uma incidência de DDA de 2,72% em 184 doentes com PBi, recomendado o rastreio ecográfico a todos os doentes com PBi. Neste estudo, a taxa encontra-se dentro da incidência descrita na literatura para DDA diagnosticada ecograficamente, que pode variar até valores tão elevados como 80:10001. Por fim, Pollet et al13 identificaram o PBi como fator de risco para DDA, apesar de não reportarem uma verdadeira taxa de incidência de DDA nesta população, uma vez que estudaram os doentes com DDA e tentaram identificar quais os possíveis fatores de risco associados, identificando 42 casos de PBi em 1469 doentes com DDA (Tabela 6).
Por outro lado, há inúmeros estudos que não suportam esta associação, mesmo identificando taxas de incidência de DDA tão elevadas como as reportadas por Paton et al15 de 13,67% que diagnosticaram ecograficamente 19 casos de DDA em 139 doentes com PBi, mas apenas 1 apresentava DDA considerada patológica (Graf III), refutando assim a hipótese de associação entre ambas as patologias (Tabela 6).
Dos estudos mais antigos, Chung et al16 estudaram 801 doentes com Pé boto, mas excluindo os associados a condições do SNC apresentaram uma população de 736 PBi, onde foram encontrados 12 casos de DDA. Já Lochmiller et al17 estudaram 285 doentes com PBi, mas apenas apresentaram registos relativos às ancas em 212, onde diagnosticaram apenas 5 casos de DDA, não suportando a relação. Também Westberry et al7 refutaram a necessidade de rastreio imagiológico de DDA em doentes com PBi após estudarem 349 doentes, onde 127 fizeram rastreio ecográfico, e apenas identificando 1 caso de DDA (Tabela 6).
Numa das maiores séries, que incluía 677 crianças nascidas com PBi e 2037 controlos, Mahan et al18 concluíram que não é necessário o rastreio imagiológico por rotina em recém-nascidos com PBi e que estes exames devem ser realizados quando existe alguma suspeita após a avaliação clínica, uma vez que apenas identificaram 5 casos de DDA que necessitaram de tratamento na população em estudo. Chou et al19 chegaram à mesma conclusão, após terem estudado a prevalência da DDA numa população de 101 crianças, onde trataram apenas uma com DDA (0,99%) e identificaram outras 16 que evoluíram para a normalidade sem necessidade de tratamento. Mais recentemente, Toufaily et al20 e Ibrahim et al21 também não consideram que o PBi seja um fator de risco para DDA, reportando incidência de DDA de 1,41% e 4,1% respetivamente (Tabela 6).
O presente estudo tem algumas limitações. O facto de ser retrospetivo, impediu a obtenção de dados relativamente à gravidade dos PBi tratados em muitos doentes, até porque vários Ortopedistas estiveram envolvidos no tratamento destes doentes e não foi adotada, uniformemente uma classificação para a deformidade. Assim, não foi possível estudar se a incidência de DDA era maior nas crianças com PBi de maior gravidade. A ausência de um grupo de controlo, uma vez que, como não foi realizado rastreio ecográfico a todos os doentes, não conseguimos apurar se há mais casos de DDA que evoluíram para a normalidade espontaneamente e que não tenham sido detetados. Por outro lado, houve dificuldade em identificar nos registos clínicos quais as anomalias observadas no exame clínico e/ou fatores de risco de DDA que levaram à realização de ecografia ou radiografia para excluir a presença de DDA. Por fim, a incidência de PBi pode estar sobrestimada, uma vez que nesta instituição não são apenas tratados os doentes da área de abrangência, mas por vezes são enviados de outras zonas do país.