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Volume 29, Fascículo I   Luxação de Artroplastia Total da Anca Secundária a Desgaste do Cone Femoral
Luxação de Artroplastia Total da Anca Secundária a Desgaste do Cone Femoral
Luxação de Artroplastia Total da Anca Secundária a Desgaste do Cone Femoral
  • Caso Clínico

Autores: Rita C. Lopes; João Sousa; Ricardo Alves; Rui Amaral
Instituições: Serviço de Ortopedia, Centro Hospitalar do Oeste
Revista: Volume 29, Fascículo I, p48 a p56
Tipo de Estudo: Estudo Diagnóstico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2019-10-07
Revisão: 2020-04-01
Aceitação: 2021-01-31
Publicação edição electrónica: 2021-11-22
Publicação impressa: 2021-11-22

INTRODUÇÃO

A artroplastia total da anca é atualmente um procedimento de sucesso para alívio álgico e restauração da mobilidade e função da anca. O  progresso nas últimas décadas, nomeadamente a utilização de implantes modulares permite uma diversidade alargada de estratégias intraoperatórias para restituir a biomecânica da anca, o offset femoral, a tensão dos tecidos moles e o comprimento do membro inferior. Contudo, a modularidade confere  uma outra interface onde pode ocorrer corrosão e desgaste dos biomateriais, resultando partículas e iões metálicos que se difundem pelos tecidos  adjacentes e induzem uma reação tecidular local adversa (metalose, osteólise), variável entre os casos descritos1. Verifica-se um aumento do nível sérico de iões metálicos crómio e cobalto com resultante hiperreatividade linfática, hipersensibilidade, toxicidade no tecido local, disfunção renal e transformação maligna.

Embora a libertação de iões metálicos do colo femoral seja um processo frequentemente relatado na literatura, foram apenas relatados alguns casos de falência da artroplastia total primária da anca por desgaste macroscópico do colo2.

Morlock et al.3 defenderam a presença de dois requisitos no desenvolvimento de corrosão: os micromovimentos entre os componentes causando  desgaste das superfícies em fricção e a infiltração de líquido articular com disrupção da camada passiva de óxido e aumento da suscetibilidade da superfície  metálica a corrosão mecânica. São vários os fatores associados ao aumento do desgaste, nomeadamente fatores relacionados com o implante, com o  indivíduo e fatores cirúrgicos4. Relativamente ao implante, de notar a importância das ligas metálicas utilizadas e o desenho dos componentes aplicados. A cabeça femoral constituída por crómio-cobalto acoplada a um colo de titânio pode induzir corrosão galvânica e fragilidade da interface4. Apesar de mais frequentemente documentada metalose em próteses metal-metal, verificou-se em algumas artroplastias metal-polietileno uma elevada concentração sérica de iões metálicos secundário a desgaste do colo2,5. São também fatores de exacerbação da corrosão na interface a cabeça femoral de diâmetro superior a 36mm, colo de diâmetro reduzido, colo longo, colo varo e offset elevado1,2,5,6. Características do paciente como o índice de massa corporal superior a 30kg/m2, sexo masculino, idade jovem ou maior  atividade física são fatores associados a maior desgaste4. Uma maior carga mecânica causa maior força de atrito na interface cabeça-colo femoral  acelerando a corrosão. Ainda a equacionar os fatores cirúrgicos como a interposição de tecido ou incorreta seleção ou encaixe dos componentes, danificação da superfície modular dos componentes2,4,7. A alteração da superfície de contacto induz uma rápida deformidade e desgaste dos componentes. A combinação destes fatores potenciais contribui para a falência da artroplastia.

Encontram-se poucos casos publicados de corrosão e deterioração do colo da artroplastia total primária da anca com ou sem falência súbita do implante, sendo assim uma causa rara de revisão. A exposição do caso pretende alertar para esta forma de falência de artroplastia e os seus fatores de risco.

DESCRIÇÃO DO CASO

Doente do sexo masculino, 73 anos de idade, com um índice de massa corporal (IMC) de 28 Kg/m2. Antecedentes de artroplastia total da anca  direita (acetábulo Trident PSL 52mm, polietileno TridentX3, cabeça femoral LFIT Anatomic V40 40+4mm e haste ABG II #4 - Stryker Orthopaedics) em dezembro de 2007, artroplastia total da anca esquerda em outubro de 2008, Diabetes mellitus tipo II diagnosticada em 2008 medicada e controlada. Sem alergias conhecidas.

Na consulta de seguimento de Ortopedia, um ano depois da segunda artroplastia da anca o utente descreveu um estilo de vida ativo, sem queixas  álgicas e sem limitação nas atividades diárias. A radiografia da bacia não apresentou sinais sugestivos de complicação (Figura 1). Não compareceu na  consulta de seguimento subsequente.

Após 11 anos assintomático, o paciente foi trazido ao serviço de urgência do hospital por dor súbita intensa 7/10, localizada na anca direita com limitação da mobilidade articular e incapacidade da marcha. A radiografia da bacia apresentava dissociação entre a cabeça e o colo da haste femoral da artroplastia total da anca direita associado a deformidade do colo (Figura 2). Era ainda visível o desgaste assimétrico do polietileno, osteólise do grande trocânter direito, aparentemente sem descolamento dos componentes femoral e acetabular. Analiticamente apresentava parâmetros inflamatórios (proteína C reativa e velocidade de sedimentação) no intervalo de normalidade.

Foi proposto revisão de artroplastia total da anca com substituição do componente femoral e do polietileno, que foi aceite pelo doente.

Durante a cirurgia, após abertura da cápsula foi aspirado líquido sinovial e recolhido tecidos moles periprotésicos que foram enviados para exame  microbiológico conforme protocolo, cujo resultado foi negativo. Confirmou-se no intraoperatório a dissociação completa da cabeça e colo femoral,  a cabeça femoral presente no acetábulo e o colo femoral encontrava-se desgastado em todo o seu diâmetro com perda superior a 50% do volume (Figura 3). Foram removidas pequenas partículas de desgaste metálicas com cerca de 2cm (Figura 4) livres nos tecidos periprotésicos. O fémur proximal  apresentava osteólise moderada com metalose adjacente, com haste femoral fixa. Foi verificado intraoperatoriamente, após recolocação da cabeça, a instabilidade cabeça-colo da artroplastia femoral.

Devido ao desgaste e instabilidade associada, o componente femoral foi substituído por uma haste femoral não cimentada de apoio diafisário  Restauration 155mm e substituído o polietileno TridentX3 e cabeça femoral LFIT Anatomic V40 40-4 mm. Foi realizada osteotomia do grande trocânter, tendo sido fixado posteriormente com placa em gancho (Dall-miles 110mm) e cabos de aço (Figura 5). Não se verificaram complicações neurovasculares.

O pós-operatório imediato decorreu sem intercorrências, tendo iniciado marcha com canadianas com apoio parcial do membro inferior direito. Ao terceiro mês de pós-operatório deambulava com uma canadiana, com um padrão de marcha de Trendelenburg, mobilidade articular da  anca com 90º deflexão e 10º de extensão. No controlo radiográfico não se observaram complicações da osteossíntese (Figura 6).

Ao quinto mês de pós-operatório apresentou rubor e calor associado a flutuação na extremidade distal da cicatriz cirúrgica. Foi realizada limpeza  cirúrgica de exsudato purulento localizado ao tecido subcutâneo e colheita de material para exame microbiológico. Foi ainda removido tecido com metalose e, após confirmação da consolidação do grande trocânter procedeu-se a extração de placa de gancho e cabos de aço (Figura 7). Foi instituída  antibioterapia empírica com vancomicina 2000mg e gentamicina 240mg por dia. Ao quinto dia de pós-operatório foi isolado na colheita intraoperatória Enterococcus faecalis sensível à terapêutica instituída. O doente apresentou-se clinicamente melhorado com regressão analítica dos parâmetros inflamatórios. Cumpriu 15 dias de antibioterapia dupla via endovenosa e posteriormente foi prescrito antibioterapia oral no domicílio durante quatro semanas. A evolução foi favorável, com cicatrização eficaz. Ao nono mês de pós-operatório deambulava com uma canadiana mantendo a marcha de Trendelenburg, analiticamente com parâmetros inflamatórios no intervalo de normalidade.

DISCUSSÃO

A falência da artroplastia total da anca por dissociação cabeça-colo femoral secundário a desgaste ou corrosão permanece um mecanismo raro, sendo a sua prevalência desconhecida4,5. Dada a variabilidade de sintomas, é difícil quantificar os casos subclínicos ou que perderam seguimento. A  causa é provavelmente multifatorial, criando um microambiente local que inicia e perpetua o desgaste e stress sobre os componentes.

No caso apresentado, identificam-se alguns dos fatores de risco mencionado nomeadamente ser do sexo masculino, com IMC de 28 Kg/m2 (próximo de 30 Kg/m2), com um diâmetro da cabeça femoral de 40mm (superior a 36mm) e um elevado offset. O valor de offset da artroplastia inicial medido no plano  radiográfico foi de 59mm, superior ao preconizado (41 a 44mm). É de notar que a medição radiográfica do offset varia com a rotação da anca, sendo mais precisa a avaliação tomográfica a três dimensões. Relativamente ao tipo de implante, em 2012 a Stryker emitiu um aviso voluntário de ação de campo de produtos dispositivos médicos relativo à alta  taxa de revisão das hastes ABG II, devido à reação tecidular adversa local e osteólise provenientes da corrosão ao nível da junção modular8. Em 2016, a Stryker emitiu também parecer relativo a certos diâmetros de cabeça femoral LFIT Anatomic V40, que inclui o tamanho 40+4mm1. A presença de  partículas metálicas no tecido periprotésico com cerca de 2mm poderá ser consequente a interposição de tecido e incorreto encaixe dos componentes ou danificação da superfície modular dos componentes, com distribuição assimétrica do stress e perda cíclica de contacto, com corrosão da superfície  de interface. Outra possibilidade ponderada é que os micromovimentos que provocam um desgaste microscópico vão progressivamente aumentando  em amplitude ao longo dos anos, associado à perda de material e aumento do espaço entre as superfícies em interface, com consequente perda do press-fit entre a cabeça-colo e produção de partículas metálicas macroscópicas. O desgaste tende a ser no ponto de contacto medial devido à carga em flexão  da força articular, com afunilamento.

Este parece ser um problema que afeta várias marcas de material ortopédico. Banerjee et al.2 descreveu cinco casos de dissociação cabeça-colo  femoral secundário a desgaste do colo envolvendo cinco hastes diferentes, associado a um diâmetro da cabeça femoral superior a 36mm, offset elevado e IMC elevado: haste M/L Taper (Zimmer), haste Accolade TMZF (Stryker Orthopaedics), haste Bimetric (Biomet Orthopaedics), RMHS Smith and Nephew Richars e Alloclassic Zweymuller (Sulzer). Ko et al.4 apresenta uma série de casos com haste Accolade TMZF, defendendo que o desgaste pode estar associado à utilização de uma liga titânio de  menor elasticidade e maior desgaste associado à utilização da cabeça femoral de crómio-cobalto. Seria de esperar um maior número de casos de falência da artroplastia se este fosse um problema universal, contudo permanece uma causa rara de  revisão e não está limitado a um tipo particular de construção ou material.

Alguns passos podem ser realizados para reduzir o risco de corrosão. Na avaliação pré-operatória do doente candidato a artroplastia total da anca, deve ser tido em conta o seu índice de massa corporal, idade e exigência física diária. No intra-operatório, limpar o colo antes da impactação, adequar a força de impactação necessária ao encaixe da cabeça no colo da haste femoral, seleção dos componentes de acordo com a sua composição (ligas metálicas semelhantes ou cabeça de cerâmica), evitar cabeças de grande diâmetro ou elevado offset quando possível1,3,4.

É necessário um elevado índice de suspeita e um seguimento pós-operatório periódico para o diagnóstico precoce, prévio à ocorrência de fratura  ouluxação em casos avançados de desgaste. Em indivíduos com dor de origem indeterminada, instabilidade recorrente tardia ou com fatores de  risco considerar a reação adversa local associada a desgaste mecânico da interface cabeça-colo femoral como etiologia9. Recomendado a avaliação analítica  por hemograma, proteína C reativa, velocidade de sedimentação, nível sérico de iões metálicos e/ou estudo da sinovial colhida via aspiração  articular4,10. Na presença de níveis elevados de iões metálicos ou para avaliação da alteração de tecidos moles, deve ser requerida uma ressonância  magnética na sequência de redução de artefactos metálicos4,10. Atualmente existem várias orientações relativamente à periodicidade de seguimento pós-operatório. Segundo a British Hip Society a consulta de seguimento com controlo radiográfico deve ser anual durante os primeiros cinco anos, bianual nos cinco anos seguintes e trianual posteriormente11. Contudo, não se conhece a sensibilidade da radiografia na deteção do desgaste do colo femoral e em caso de desgaste macroscópico não há evidência  que suporte a substituição da cabeça femoral. A maioria dos autores preconiza a revisão da haste femoral.

O presente caso apresenta limitações como a não quantificação do nível de iões metálicos séricos nos períodos pré e pós-operatório e a carência de  qualquer análise do implante. Dada a ausência de seguimento periódico após um ano da colocação da artroplastia primária, não conhecemos a evolução  do desgaste do colo femoral.

Apesar de ser uma complicação rara, a sua prevalência tende a aumentar com o aumento do período de seguimento associado à crescente sobrevida global. Será importante no futuro conhecer o resultado da intervenção precoce versus tardia perante o reconhecimento de sinais radiológicos de desgaste do colo femoral nesta população específica. Ainda de realçar a importância da investigação contínua relativa aos materiais, interfaces, topografia de  superfície são necessárias para minimizar as preocupações associadas à corrosão.

Referências Bibliográficas

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