DISCUSSÃO
A Hemimelia Fibular é uma patologia rara tendo diversas formas de apresentação, que pode variar desde dismetria ligeira da perna a deformidades graves de todo o membro inferior. É portanto aceitável, que haja mais do que uma estratégia para o tratamento desta condição1.
As principais opções terapêuticas são: o tratamento reconstrutivo ou a cirurgia ablativa (amputação). A maioria dos autores concorda que a cirurgia reconstrutiva é o tratamento preferível nos doentes com dismetria ligeira a moderada e deformidades ligeiras do pé. Os casos mais controversos são aqueles onde há deformidades mais grosseiras do pé e uma dismetria acentuada devido a uma maior inibição do crescimento da tíbia ou uma inibição combinada do crescimento da tíbia e fémur7,8.
Os doentes e familiares deverão receber informação que lhes permita optar por uma solução de reconstrução ou protesização, pertencendo-lhes a decisão final5. A grande vantagem da reconstrução cirúrgica é que o doente mantém a sensação do pé e contacto com o solo, providenciando equilíbrio e propriocepção9.
Este trabalho ilustra um caso clínico raro de uma reconstrução cirúrgica com início aos 11 anos de idade numa doente com Hemimelia Fibular direita e com uma dismetria previsível à maturidade de 9.52cm + diferença de altura do pé de 1.5cm. Para este cálculo utilizou-se Multiplier Method, visto que a dismetria na Hemimélia Fibular segue uma curva de Shapiro 1a, ou seja, a inibição do crescimento mantém-se constante ao longo do tempo10.
Existem numerosas classificações para a Hemimélia Fibular, sendo que a maioria são limitadas por terem sido desenvolvidas numa altura em que a reconstrução cirúrgica não era bem-sucedida e em que a amputação era o tratamento primário ou único tratamento disponível. Exemplo destas classificações são Achterman e Kalamchi, que descreve a quantidade da deficiência fibular, e a classificação de Birch que se baseia no número de raios presentes no pé5. Mais recentemente, Paley propôs uma classificação baseada na pato-anatomia e deformidade do tornozelo e articulação subtalar. É a primeira classificação que contempla a opção cirúrgica. Para cada tipo da classificação de Paley é proposto um tratamento diferente, independentemente do número de raios do pé e da dismetria dos membros inferiores5.
Segundo a classificação de Paley, estamos perante um caso de Hemimelia Fibular tipo 3A, ou seja, um caso com um equino-valgo fixo do tornozelo devido a uma má orientação da articulação do tornozelo.
O primeiro passo para o tratamento e reconstrução cirúrgica é definir um plano reconstrutivo de vida individual de forma a obter igualdade no comprimento dos membros inferiores num menor número possível de cirurgias, bem como obter um pé plantígrado funcional com bom alinhamento dos membros inferiores e articulações estáveis1.
Assim, foi delineado um plano individual que consistia em: 1º - epifisiodese do fémur distal e tíbia proximal do membro contra-lateral; 2º - alongamento da tíbia com fixador circular e 3º - alongamento do fémur com cavilha magnética.
A epifisiodese do membro contra-lateral deve ser planeada como técnica adjuvante dos alongamentos na tentativa de evitar dismetria futuras ou diminuir a dismetria total a corrigir9. O alongamento da tíbia faz parte da estratégia de tratamento para o tipo 3A de Paley, apresentando bons resultados4,5,11. O alongamento do fémur pode ser utilizado quando concomitantemente existe uma condição de fémur curto. A distração osteogénica através de cavilhas endomedulares magnéticas permite diminuir o risco de complicações comparativamente com os alongamentos tradicionais com fixador externo, nomeadamente o risco de infeção dos cravos, rigidez do joelho e fratura do regenerado12. Tem sido ainda demonstrado que estes dispositivos permitem uma carga mais precoce e levam a uma maior satisfação global dos doentes12.
Após 5 anos de tratamento e 3 intervenções cirúrgicas, obteve-se um alongamento total de 9.5cm para o membro inferior direito desta doente, que resultou em correção da dismetria, membros inferiores bem alinhados e um pé direito plantígrado funcional. Não tem quaisquer queixas de instabilidade do joelho direito. Atualmente, com 18 anos, a doente está muito satisfeita e não apresenta limitações nas atividades de vida diária. Utiliza calçado comercial corrente, sem necessidade de adaptação, preferindo habitualmente calçado desportivo. Faz desporto escolar e dança contemporânea, e apresenta um Kidscreen-10 49/50. O KidScreen é um instrumento europeu transcultural e padronizado que permite avaliar dez dimensões da qualidade de vida das crianças e adolescentes13.
Concluímos assim que, em doentes com dismetrias associadas a malformações congénitas é essencial prever a diferença do comprimento dos membros na maturidade e propor um plano reconstrutivo individual, com um menor número possível de cirurgias distribuídas ao longo dos anos de crescimento da criança / adolescente.