INTRODUÇÃO
As deformidades complexas da extremidade proximal do fémur, correspondendo geralmente a sequelas da doença de Legg-Calvé-Perthes, epifisiólise proximal do fémur, coxa vara congénita e artrite séptica da anca ou pós-traumática1,2, são relativamente comuns e podem levar a alterações persistentes ao nível da articulação coxofemoral, com repercussões importantes na idade adulta3. O atingimento da cartilagem de crescimento, com o consequente encerramento prematuro da mesma, estão na génese destas deformidades2, levando a uma redução do crescimento longitudinal do colo ou “coxa brevis”, como resultado do encerramento precoce da cartilagem de crescimento, causando um encurtamento quer do comprimento do membro quer do braço de alavanca dos abdutores4. Também se descrevem estas deformidades como como coxa vara e magna, subida do grande trocânter e cabeça femoral asférica1,2. Estas deformidades podem resultar num conflito femoro-acetabular intra e extra-articular, causando coxalgia, restrição do arco de mobilidade e diminuição da função dos músculos abductores1,5, manifestando-se clinicamente por um sinal de Trendelenburg positivo1,5 e cansaço fácil, com impacto no desempenho físico6.
Em 1935, Friedrich Pauwels desenvolveu um modelo do padrão de força da articulação coxofemoral no ser humano, ainda amplamente aceite na atualidade7. Neste modelo “clássico”, ele estabelece a hipótese de que o fémur proximal seja submetido a forças de stress: uma força resultante do peso corporal e uma força antagónica criada pela ação dos músculos abdutores inseridos no trocânter maior. Essa força resultante, atua diretamente através do centro de rotação da articulação coxofemoral, que corresponde aproximadamente ao centro da cabeça femoral, resultando numa tensão de tração do trocânter maior e numa tensão de flexão da diáfise femoral. Caso seja alterado qualquer dos componentes do esquema de Pauwels (músculos abdutores, grande trocânter ou centro de rotação), este equilíbrio biomecânico altera-se, acarretando problemas ao nível da economia da marcha7.
Para que a articulação coxofemoral cresça e se desenvolva normalmente, é imperativo que ocorra um equilíbrio, geneticamente determinado, entre o crescimento simétrico das cartilagens de crescimento acetabular e femoral, e que a cabeça femoral se encontre corretamente localizada e centrada8.
No lactente, a extremidade proximal do fémur, incluindo o grande trocânter, a zona intertrocantérica e o fémur proximal, é composta por cartilagem. O centro de ossificação femoral proximal surge entre o quarto e o sétimo mês de vida. Este centro ósseo e a zona cartilaginosa continuam a aumentar até à idade adulta, momento a partir do qual apenas uma fina camada de cartilagem articular permanece8,9. O fémur proximal e o grande trocânter aumentam por proliferação de células na zona de cartilagem. As três principais áreas de crescimento no fémur proximal são a cartilagem de crescimento proximal do fémur, a do grande trocânter e a do istmo do colo do fémur9 (Figura 1). O equilíbrio nas taxas de crescimento desses centros é responsável pela configuração normal do fémur proximal, ou seja, por uma normal relação entre o fémur proximal, o grande trocânter e a largura total do colo femoral. O crescimento do fémur proximal é afetado pela tração muscular, pelas forças transmitidas pela sustentação de peso, pela nutrição articular normal, circulação sanguínea e tónus muscular. Quaisquer alterações nesses fatores, por qualquer mecanismo, podem alterar profundamente o seu desenvolvimento.
Durante a infância, um pequeno istmo cartilaginoso conecta as placas de crescimento trocantérica e femoral ao longo do bordo lateral do colo femoral. O istmo contribui para a largura lateral do colo femoral e permanece ativo até a maturidade óssea8.
A cartilagem de crescimento proximal do fémur contribui com aproximadamente 30% do comprimento total do fémur e 13% do comprimento do membro. Qualquer dano ou interrupção do suprimento de sangue nesta placa interrompe o seu crescimento, o que resulta numa deformidade em varo, caso a cartilagem de crescimento do grande trocânter e a do istmo continuem com o seu desenvolvimento normal. A cartilagem de crescimento do grande trocânter é geralmente classificada como epífise de tração, exigindo a força dos abductores para a estimulação do crescimento8.
As três fontes principais de irrigação sanguínea do fémur proximal são o anel arterial extracapsular, os vasos cervicais ascendentes (ramos retinaculares) e a artéria do ligamento redondo (Figura 2). O anel extracapsular é formado principalmente pelos vasos circunflexos femorais medial e lateral. Este anel dá origem aos ramos cervicais ascendentes, que são extracapsulares, e estes, por sua vez, dão origem aos ramos metafisário e epifisário. A porção anterior do anel extracapsular é formada principalmente pela artéria circunflexa femoral lateral. As faces posterior, lateral e medial do anel são formadas pela artéria circunflexa femoral medial. Chung descobriu que o maior volume de fluxo sanguíneo para a cabeça femoral vem através da artéria cervical ascendente lateral (a terminação da artéria circunflexa femoral medial). A importância desta artéria radica no facto de ser extremamente estreita em crianças menores de oito anos, tornando-se uma potencial fonte de interrupção do fluxo sanguíneo femoral proximal. Antes do aparecimento do núcleo de ossificação secundário no fémur proximal, ramos da artéria cervical ascendente penetram na cabeça e terminam em expansões sinusoidais que irão suprir os centros de ossificação do fémur proximal. Trueta e Chung demonstraram que a rede anastomótica vascular anterior é muito menos extensa do que a rede anastomótica posterior, principalmente entre os 3 e 10 anos de idade8.
A cartilagem de crescimento é uma verdadeira barreira ao fluxo sanguíneo entre a epífise e a metáfise, sendo que os vasos epifisários e metafisários se originam dos ramos cervicais ascendentes. Existe uma anastomose entre essas duas circulações na superfície óssea, mas não dentro do osso. A área metafisária é bem suprida pelas inúmeras pequenas artérias metafisárias, enquanto o lado epifisário carece dessa extensa rede, tornando-o mais vulnerável à rotura. Trueta e Amato demonstraram experimentalmente que a circulação epifisária é responsável pela nutrição da cartilagem de crescimento, enquanto a circulação metafisária é responsável pela calcificação da matriz cartilaginosa, remoção das células degenerativas e depósito da matriz óssea8.
O conceito de “Doença de Perthes” é atualmente utilizado para descrever a necrose avascular idiopática da cabeça femoral na população pediátrica3,10,11. As teorias atuais sobre sua etiologia incluem o trauma, anormalidades vasculares ou aumento da carga mecânica10,11. Independentemente da causa, uma interrupção do fluxo de sangue à cabeça femoral, produzindo necrose, parece ser o evento patogénico chave, o que provoca mudanças estruturais na cabeça femoral em crescimento. A sobrecarga mecânica posterior pode lesar os vasos nas áreas de cicatrização da cabeça femoral ou produzir compressão intermitente dos vasos que atravessam a cartilagem na área de carga elevada, produzindo episódios secundários de enfarte. Essa interpretação sugere que a evicção da sobrecarga mecânica na prevenção da deformidade da cabeça do fémur seria benéfica9.
Além desses mecanismos, a necrose da cabeça femoral imatura produz uma paragem da cartilagem de crescimento esférica ao redor da epífise óssea, o que pode potencialmente piorar a deformidade da cabeça femoral. Para obter o crescimento esférico normal da epífise, a ossificação endocondral da epífise óssea deve ser restaurada de maneira simétrica e circunferencial, pois o crescimento deturpado e assimétrico pode contribuir ainda mais para a deformidade da cabeça9.
A lesão da fise de crescimento por traumatismo, resultando em paragem do crescimento e consequente deformidade, está descrita amplamente na literatura. Menos expostos estão os efeitos posteriores da artrite séptica na fise de crescimento12. A artrite séptica define-se como a invasão da articulação por microrganismos patológicos com consequente inflamação13,14. Na literatura descrevem-se vários mecanismos de destruição da articulação após a artrite séptica. Em primeiro lugar, o dano articular pode resultar da invasão de bactérias e suas endotoxinas. Secundariamente, admite-se que a inflamação do hospedeiro desempenhe um papel significativo neste dano13. Outro fator responsável pela destruição articular é a isquemia articular. O derrame articular induzido pelo processo infecioso produz aumento da pressão intra-articular com posterior obliteração dos vasos sanguíneos, isquemia e destruição da articulação. Este mecanismo é mais importante nas articulações profundas, como a articulação coxo-femoral14,15. Por outro lado, este processo infecioso pode danificar a placa de crescimento diretamente ou entrar na epífise através dos vasos transfisários existentes nesta idade. Uma vez que a epífise esteja envolvida, o processo inflamatório pode resultar em isquemiaou dano direto desta placa12. Na maioria dos casos, a cabeça mantem-se relativamente esférica com boa congruência articular, mas estabelece-se uma deformidade proximal do fémur com subida do grande trocânter, colo curto e deformidade em varo, altamente incapacitantes e responsáveis por uma artrose precoce16.
Apesar dos avanços tecnológicos, a correção das sequelas destas deformidades continua sendo um desafio1. O princípio básico da sua correção é o restabelecimento do esquema de Pauwels2,7. Parte-se do princípio de que a correção destas deformidades complexas através de uma osteotomia de valgização e alongamento relativo do colo associado a uma transferência distal do grande trocânter, são fundamentais no restabelecimento dos parâmetros anatómicos e na melhoria do quadro clínico.
Os autores descrevem uma série de seis doentes jovens (7 ancas), que apresentavam uma deformidade complexa da extremidade proximal do fémur, de várias etiologias, que se traduziram por dificuldade na marcha e claudicação, submetidos a uma osteotomia dupla da extremidade proximal do fémur.