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Volume 29, Fascículo III   Deformidade complexa da extremidade proximal do fémur no jovem em crescimento - A propósito de sete ancas
Deformidade complexa da extremidade proximal do fémur no jovem em crescimento - A propósito de sete ancas
Deformidade complexa da extremidade proximal do fémur no jovem em crescimento - A propósito de sete ancas
  • Artigo Original

Autores: Francisco de Brito; Catarina Valente; Susana Norte; Mónika Thüsing; Manuel Cassiano Neves
Instituições: Serviço de Ortopedia do Hospital CUF Descobertas, Lisboa
Revista: Volume 29, Fascículo III, p218 a p230
Tipo de Estudo: Estudo Retrospetivo
Nível de Evidência: Nível IV

Submissão: 2021-08-30
Revisão: 2021-10-11
Aceitação: 2021-10-18
Publicação edição electrónica: 2022-04-29
Publicação impressa: 2022-04-29

INTRODUÇÃO

As deformidades complexas da extremidade proximal do fémur, correspondendo geralmente a sequelas da doença de Legg-Calvé-Perthes, epifisiólise proximal do fémur, coxa vara congénita e artrite séptica da anca ou pós-traumática1,2, são relativamente comuns e podem levar a alterações  persistentes ao nível da articulação coxofemoral, com repercussões importantes na idade adulta3. O atingimento da cartilagem de crescimento, com o  consequente encerramento prematuro da mesma, estão na génese destas deformidades2, levando a uma redução do crescimento longitudinal do colo ou “coxa brevis”, como resultado do encerramento precoce da cartilagem de crescimento, causando um encurtamento quer do comprimento do membro quer do braço de alavanca dos abdutores4. Também se descrevem estas deformidades como como coxa vara e magna, subida do grande trocânter e cabeça  femoral asférica1,2. Estas deformidades podem resultar num conflito femoro-acetabular intra e extra-articular, causando coxalgia, restrição do arco de mobilidade e diminuição da função dos músculos abductores1,5, manifestando-se clinicamente por um sinal de Trendelenburg positivo1,5 e cansaço fácil, com impacto no desempenho físico6.

Em 1935, Friedrich Pauwels desenvolveu um modelo do padrão de força da articulação coxofemoral no ser humano, ainda amplamente aceite na atualidade7. Neste modelo “clássico”, ele estabelece a hipótese de que o fémur proximal seja submetido a forças de stress: uma força resultante do peso corporal e uma força antagónica criada pela ação dos músculos abdutores inseridos no trocânter maior. Essa força resultante, atua diretamente através do centro de rotação da articulação coxofemoral, que corresponde aproximadamente ao centro da cabeça femoral, resultando numa tensão de tração do trocânter maior e numa tensão de flexão da diáfise femoral. Caso seja alterado qualquer dos componentes do esquema de Pauwels (músculos abdutores, grande trocânter ou centro de rotação), este equilíbrio biomecânico altera-se, acarretando problemas ao nível da economia da marcha7.

Para que a articulação coxofemoral cresça e se desenvolva normalmente, é imperativo que ocorra um equilíbrio, geneticamente determinado, entre o  crescimento simétrico das cartilagens de crescimento acetabular e femoral, e que a cabeça femoral se encontre corretamente localizada e centrada8.

No lactente, a extremidade proximal do fémur, incluindo o grande trocânter, a zona intertrocantérica e o fémur proximal, é composta por cartilagem. O centro de ossificação femoral proximal surge entre o quarto e o sétimo mês de vida. Este centro ósseo e a zona cartilaginosa continuam a aumentar até à idade adulta, momento a partir do qual apenas uma fina camada de cartilagem articular permanece8,9. O fémur proximal e o grande trocânter aumentam por proliferação de células na zona de cartilagem. As três principais áreas de crescimento no fémur proximal são a cartilagem de crescimento proximal do fémur, a do grande trocânter e a do istmo do  colo do fémur9 (Figura 1). O equilíbrio nas taxas de crescimento desses centros é responsável pela configuração normal do fémur proximal, ou seja,  por uma normal relação entre o fémur proximal, o grande trocânter e a largura total do colo femoral. O crescimento do fémur proximal é afetado pela tração muscular, pelas forças transmitidas pela sustentação de peso, pela nutrição articular normal, circulação sanguínea e tónus muscular. Quaisquer alterações nesses fatores, por qualquer mecanismo, podem alterar profundamente o seu desenvolvimento.

Durante a infância, um pequeno istmo cartilaginoso conecta as placas de crescimento trocantérica e femoral ao longo do bordo lateral do colo femoral. O istmo contribui para a largura lateral do colo femoral e permanece ativo até a maturidade óssea8.

A cartilagem de crescimento proximal do fémur contribui com aproximadamente 30% do comprimento total do fémur e 13% do comprimento do membro. Qualquer dano ou interrupção do suprimento de sangue nesta placa interrompe o seu crescimento, o que resulta numa deformidade em varo, caso a cartilagem de crescimento do grande trocânter e a do istmo continuem com o seu desenvolvimento normal. A cartilagem de crescimento do grande trocânter é geralmente classificada como epífise de tração, exigindo a força dos abductores para a estimulação do crescimento8.

As três fontes principais de irrigação sanguínea do fémur proximal são o anel arterial extracapsular, os vasos cervicais ascendentes (ramos retinaculares) e a artéria do ligamento redondo (Figura 2). O anel extracapsular é formado principalmente pelos vasos circunflexos femorais medial e lateral. Este anel dá origem aos ramos cervicais ascendentes, que são extracapsulares, e estes, por sua vez, dão origem aos ramos metafisário e epifisário. A porção anterior do anel extracapsular é formada principalmente pela artéria circunflexa femoral lateral. As faces posterior, lateral e medial do anel são formadas pela artéria circunflexa femoral medial. Chung descobriu que o maior volume de fluxo sanguíneo para a cabeça femoral vem através da artéria cervical ascendente lateral (a terminação da artéria circunflexa femoral medial). A importância desta artéria radica no facto de ser extremamente estreita em crianças menores de oito anos, tornando-se uma potencial fonte de interrupção do fluxo sanguíneo femoral proximal. Antes do aparecimento do núcleo de ossificação secundário no fémur proximal, ramos da artéria cervical ascendente penetram na cabeça e terminam em expansões sinusoidais que irão suprir os centros de ossificação do fémur proximal. Trueta e Chung demonstraram que a rede anastomótica vascular anterior é muito menos extensa do que a rede anastomótica posterior, principalmente entre os 3 e 10 anos de idade8.

A cartilagem de crescimento é uma verdadeira barreira ao fluxo sanguíneo entre a epífise e a metáfise, sendo que os vasos epifisários e  metafisários se originam dos ramos cervicais ascendentes. Existe uma anastomose entre essas duas circulações na superfície óssea, mas não dentro do osso. A área metafisária é bem suprida pelas inúmeras pequenas artérias metafisárias, enquanto o lado epifisário carece dessa extensa rede, tornando-o mais vulnerável à rotura. Trueta e Amato demonstraram experimentalmente que a circulação epifisária é responsável pela nutrição da  cartilagem de crescimento, enquanto a circulação metafisária é responsável pela calcificação da matriz cartilaginosa, remoção das células degenerativas e depósito da matriz óssea8.

O conceito de “Doença de Perthes” é atualmente utilizado para descrever a necrose avascular idiopática da cabeça femoral na população  pediátrica3,10,11. As teorias atuais sobre sua etiologia incluem o trauma, anormalidades vasculares ou aumento da carga mecânica10,11. Independentemente da causa, uma interrupção do fluxo de sangue à cabeça femoral, produzindo necrose, parece ser o evento patogénico chave, o que provoca mudanças estruturais na cabeça femoral em crescimento. A sobrecarga mecânica posterior pode lesar os vasos nas áreas de cicatrização da cabeça femoral ou produzir compressão intermitente dos vasos que atravessam a cartilagem na área de carga elevada, produzindo episódios secundários de enfarte. Essa interpretação sugere que a evicção da sobrecarga mecânica na prevenção da deformidade da cabeça do fémur seria benéfica9.

Além desses mecanismos, a necrose da cabeça femoral imatura produz uma paragem da cartilagem de crescimento esférica ao redor da epífise óssea, o  que pode potencialmente piorar a deformidade da cabeça femoral. Para obter o crescimento esférico normal da epífise, a ossificação endocondral  da epífise óssea deve ser restaurada de maneira simétrica e circunferencial, pois o crescimento deturpado e assimétrico pode contribuir ainda mais  para a deformidade da cabeça9.

A lesão da fise de crescimento por traumatismo, resultando em paragem do crescimento e consequente deformidade, está descrita amplamente na literatura. Menos expostos estão os efeitos posteriores da artrite séptica na fise de crescimento12. A artrite séptica define-se como a invasão da articulação  por microrganismos patológicos com consequente inflamação13,14. Na literatura descrevem-se vários mecanismos de destruição da articulação após a artrite séptica. Em primeiro lugar, o dano articular pode resultar da invasão de bactérias e suas endotoxinas. Secundariamente, admite-se que a inflamação do hospedeiro desempenhe um papel significativo neste dano13. Outro fator responsável pela destruição  articular é a isquemia articular. O derrame articular induzido pelo processo infecioso produz aumento da pressão intra-articular com posterior obliteração dos vasos sanguíneos, isquemia e destruição da articulação. Este mecanismo é mais importante nas articulações profundas, como a articulação coxo-femoral14,15. Por outro lado, este processo infecioso pode danificar a placa de crescimento diretamente ou entrar na epífise através dos vasos transfisários existentes nesta idade. Uma vez que a epífise esteja envolvida, o processo inflamatório pode resultar em  isquemiaou dano direto desta placa12. Na maioria dos casos, a cabeça mantem-se relativamente esférica com boa congruência articular, mas estabelece-se uma deformidade proximal do fémur com subida do grande trocânter, colo curto e deformidade em varo, altamente incapacitantes e responsáveis por uma  artrose precoce16.

Apesar dos avanços tecnológicos, a correção das sequelas destas deformidades continua sendo um desafio1. O princípio básico da sua correção é o  restabelecimento do esquema de Pauwels2,7. Parte-se do princípio de que a correção destas deformidades complexas através de uma osteotomia de valgização e alongamento relativo do colo associado a uma transferência distal do grande trocânter, são fundamentais no restabelecimento dos parâmetros anatómicos e na melhoria do quadro clínico.

Os autores descrevem uma série de seis doentes jovens (7 ancas), que apresentavam uma deformidade complexa da extremidade proximal do fémur, de várias etiologias, que se traduziram por dificuldade na marcha e claudicação, submetidos a uma osteotomia dupla da extremidade proximal do fémur.

MATERIAL E MÉTODOS

Trata-se de uma revisão retrospetiva de 6 doentes (7 ancas) operados pelo cirurgião sénior entre 2009 e 2020, que apresentavam uma deformidade  complexa da extremidade proximal do fémur. Esta deformidade traduzia-se por coxa-vara, colo curto e subida do grande trocânter. Em todas as ancas a  cabeça femoral era relativamente esférica (Stulberg I ou II) e um doente apresentava uma ligeira “não esfericidade” mas com boa congruência articular  e sem instabilidade articular. Quatro doentes eram do sexo masculino e dois eram do sexo feminino. As idades variaram entre os 8 e os 16 anos (idade media: 11,8 anos) e o diagnóstico da doença inicial foi em 42% coxa vara congénita, em 29% Doença  de Perthes e em 29% artrite séptica da anca, que condicionaram uma deformidade progressiva da extremidade proximal do fémur . No pré operatório foram avaliados clinicamente em termos de presença ou não de dor, mobilidades articulares, fadiga ao esforço, presença de dismetria e de sinal de Trendelenburg. Em termos radiográficos (Figura 3) foram analisados a congruência articular e os seguintes parâmetros radiográficos: ângulo cérvico-diafisário (ACD), distância articular-grande trocânter (DAT), distância centro da cabeça - grande trocânter (DCT) e relação entre o braço de alavanca do corpo e dos abdutores da balança de Pauwels (A/B).

Todos foram submetidos ao mesmo tipo de tratamento cirúrgico: osteotomia dupla da extremidade proximal do fémur (valgização e distalização do grande trocânter) e tenotomia previa dos adutores quando detetada pré-operatoriamente uma grande tensão na abdução.

TÉCNICA CIRURGICA

Sob anestesia combinada e com controlo fluoroscópico, procedeu-se ao estudo da congruência articular de forma a prevenir incongruências articulares com as osteotomias preconizadas. O primeiro passo da intervenção consistiu no alongamento dos adutores em Z com o doente em decúbito dorsal. Secundariamente, o doente é colocado em marquesa ortopédica de forma a permitir a visualização com fluoroscopia da extremidade proximal do fémur, de forma circunferencial. Após abordagem por via externa centrada ao grande trocânter procede-se à sua osteotomia e transferência distal e lateralização do mesmo, fixando-se provisoriamente com fios de Kirscnher e parafuso de compressão. Seguidamente procede-se a osteotomia de valgização intertrocantérica com orientação obliqua de externo para interno e distal para proximal com ressecção de pequena cunha externa para valgização, de forma a restabelecer um ângulo cervicodiafisário próximo do normal, associado a deslizamento externo da diáfise de forma a permitir um alongamento relativo do colo. Esta osteotomia é fixada com placa própria para a extremidade proximal do fémur das crianças/adolescentes, tendo-se utilizado uma placa anatómica  bloqueada de osteotomia proximal do fémur (LCP Pediatric Hip Plate 3.5/5.0 da Synthes® ou JPS JuniOrtho Plating System da Orthofix®) tendo em atenção os parâmetros radiográficos determinados pré-operatoriamente (Figura 4).

RESULTADOS

Da avaliação clínica dos doentes incluídos nesta serie, com um recuo mínimo de 18 meses e máximo de 8 anos, chama a atenção o facto de todos apresentarem inicialmente uma marcha claudicante com sinal de Trendelenburg positivo. Concomitantemente apresentavam um encurtamento do membro lesado  que variava entre os 14 e os 22 mm. Nos doentes com coxa vara, como apresentavam um envolvimento bilateral, não foi considerada a dismetria. A maioria referia cansaço após marcha prolongada e limitação das atividades desportivas. Em termos de mobilidade da anca lesada era frequente uma diminuição da abdução e também uma limitação das rotações (Tabela 1).

No pós-operatório houve uma melhoria franca do quadro clinico que se traduziu numa marcha não claudicante, desaparecimento do sinal de Trendelenburg (Figura 5) e desaparecimento do cansaço ao esforço físico. Notou-se também uma recuperação média da dismetria de 10 mm.

Em termos radiográficos verificou-se também uma melhoria franca dos parâmetros analisados em todos os doentes (Tabela 2). O ângulo médio cervico-diafisário que era no pré-operatório de 85º (Min: 60º - Máx: 126º) melhorou no pós-operatório para 130º (Min: 121º - Máx: 140º), a distancia da linha do teto acetabular até ao grande trocânter passou de – 6,1 mm (Min: +2 mm - Máx: -13mm) para +15,1 mm (Min: +10mm - Máx: +24mm), a distancia do centro da cabeça ao grande trocanter passou de 36 mm (Min: 30 mm - Máx: 52mm) para 42 mm (Min: 30mm - Máx: 59mm), e a relação dos braços de alavanca da balança de Pauwels passou de 1,53 (Min: 1,22 - Máx: 1,82) para 1,24 (Min: 1,10 - Máx: 1,42). (Figuras 6 e 7).

DISCUSSÃO

A correção de deformidades complexas do segmento proximal do fêmur em crianças e adolescentes é um verdadeiro desafio1,7, com algumas premissas ainda por definir.

Uma das principais preocupações é equilibrar biomecanicamente a articulação coxofemoral (Figura 8). Um colo femoral curto corresponde a um curto braço de alavanca dos músculos abdutores da anca (glúteo médio e mínimo). Além disso, a elevação do trocânter diminui a tensão dos músculos abdutores1,2. Tudo isto resulta num teste de Trendelenburg positivo e em claudicação. Além da marcha patológica, os pacientes sofrem de fadiga anormal dos abdutores da anca e limitação da abdução, devido ao conflito do grande trocânter com a face externa do ilíaco3.

Existem várias técnicas descritas para restaurar a biomecânica do fémur proximal, seja com correção aguda através de osteotomias e fixação interna ou com correção progressiva através de um fixador externo1,3.

Nesta série de 6 doentes (7 ancas), a técnica usada para tratar a deformidade foi inicialmente descrita em 1980 por Hasler e Morscher2,17. O objetivo da osteotomia de valgização intertrocantérica com alongamento relativo do colo femoral e transferência distal do grande trocânter é reconstruir a anatomia normal e a biomecânica do fémur proximal, corrigindo também a discrepância no comprimento do membro e melhorando a marcha2,3,17. Como princípio básico do procedimento, o colo femoral é alongado pela lateralização da diáfise femoral ao longo da dupla osteotomia. Como esta última é oblíqua em relação à diáfise femoral, o fémur é alongado simultaneamente, corrigindo ou, pelo menos, diminuindo uma possível hipometria do membro afetado2. Além disso, devido ao alongamento do braço de alavanca (colo femoral mais longo) e à transferência distal do grande trocânter, a tensão dos abdutores da anca é aumentada, resultando numa melhoria da sua função1,2,17. O procedimento também medializa o centro da cabeça femoral e, portanto, encurta o braço de alavanca do peso corporal2. Tudo isso contribui para a normalização do padrão de marcha2 com ganhos ao nível da economia de energia na marcha1. A correção simultânea do ângulo cérvico-diafisário também é indicada se estivermos perante uma coxa vara2,3. Em particular nos doentes com coxa vara, em que existe um risco  de instabilidade por displasia acetabular associada, optou-se por uma valgização moderada de forma a evitar demasiada tensão articular. Nenhum dos  doentes incluídos nesta séria necessitou de gesto acessório ao nível do acetabulo para correção da displasia.

Lascombes e Prévot10 publicaram uma técnica semelhante em 1985. Os autores apresentaram 5 casos, dos quais apenas três tiveram um seguimento  superior a 1 ano. Verificou-se a negativização do teste de Trendelenburg, melhoria na abdução e um aumento médio do comprimento da perna de  1,5 cm no pós-operatório, em todos os casos. Em 1988, Buess e Morscher18, realizaram esta técnica em 15 doentes (16 ancas), tendo obtido resultados  satisfatórios em 14 casos, não particularizando os 2 casos restantes, no entanto, sugeriram um dado pertinente à seleção dos casos aptos para este tipo de cirurgia: eleição de doentes jovens com pouca ou nenhuma alteração degenerativa. Em 1991, Lengsfeld et al.19, utilizaram a técnica supracitada numa serie de 24 doentes, referindo bons resultados em 23 deles. Para estes autores, a melhoria das queixas álgicas e a negativização do sinal de Trendelenburg correspondem aos objetivos a curto prazo, sendo que a prevenção ou desaceleração das alterações degenerativas coxofemorais, aos objetivos a longo prazo.

Relativamente aos resultados radiográficos da nossa serie, destacamos que vai de encontro ao descrito na literatura. Sangkaew et al.20, publicaram em 2012 uma seria de 12 casos tratados pela técnica descrita, sendo que conseguiram uma alteração do ângulo medio cervico-diafisário de 113º (85º na nossa serie), para 138,2º (130º na nossa serie), assim como da dismetria em 12,7mm (10mm na nossa serie, na qual apenas os casos 1, 4, 5 e 6 apresentavam dismetria).

Em contraste, Teplenky et al., em 2016, publicaram uma serie de 19 doentes com as deformidades supracitadas, tratadas com osteotomia  pertrocanterica em forma de C juntamente com osteodistração utilizando o aparelho de Ilizarov, conseguindo simultaneamente a correção das  deformidades e o alongamento do colo (controlando igualmente a correção da dismetria). Os autores acreditam que, esta técnica, promove a angiogênese  e formação de novas células ósseas, permitindo a correção de deformidades que dificilmente seriam corrigidas com o uso de dispositivos fixos e rígidos, reclamando a versatilidade do Ilizarov. Os autores descrevem 4 casos de infeção dos pinos (3 de infecção superficial e 1 de infecção profunda) que cederam com antibioterapia oral e 3 casos de dismetria de 10 mm (tratamento conservador)21. Na nossa série, não foram observados quaisquer casos de infeção, no entanto destacamos no caso 5, uma dismetria mantida de 15 mm, que aguarda correção por epifisiodese contra lateral na idade programada.

Apesar dos resultados promissores, o Ortopedista muitas vezes depara-se não só com a incerteza de qual o melhor procedimento a ser realizado, mas também com a dúvida do melhor momento para realizar a correção deste tipo de deformidade. Para alguns autores, “esta osteotomia só deve ser realizada após o encerramento da cartilagem de crescimento superior do fémur e do grande  trocânter”2. O crescimento trocantérico, a nível ósseo e cartilaginoso, encontra-se geralmente concluído aos 7 anos de idade, em indivíduos do sexo feminino, e aos 8 anos de idade em indivíduos do sexo masculino11, pelo que é admissível realizar este tipo de cirurgia após essa idade, sendo que a  totalidade dos nossos doentes foram tratados após essa idade. Este dado, relaciona-se com o facto dos doentes se encontrarem clinicamente assintomáticos até à subida do grande trocânter, momento a partir do qual se produz uma insuficiência da balança de Pauwels, com o aparecimento de claudicação e dor, motivo pelo qual recorrem ao Ortopedista.

Ghaffari et al.22, em 2020, realizaram uma meta-analise, na qual selecionaram 11 artigos. Nessa publicação, os autores destacam que a menor taxa percentual de negativização do sinal de Trendelenburg relatada foi 30%. Justificam esse facto com a idade média dos pacientes desse estudo ser superior em comparação com a idade média dos pacientes dos restantes (34 versus 20 anos), sugerindo que resultados satisfatórios são mais  alcançáveis em indivíduos mais jovens com maior capacidade de restaurar a força dos abdutores. Este dado, relaciona-se com os bons resultados do nosso estudo, onde houve uma taxa de negativização do sinal de Trendelenburg de 100%.

Pelo supracitado, os autores sugerem a necessidade de acompanhar de forma sistemática todas as crianças que tenham potencial para desenvolver  mais tarde uma deformidade complexa do fémur. O objetivo seria o de identificar precocemente estes casos e estabelecer um plano terapêutico que evite a progressão das alterações degenerativas da articulação coxofemoral. Por outro lado, seria benéfico tentar identificar futuramente os preditores da progressão para osteoartrite, nos doentes com  estas deformidades, uma vez que na maioria dos casos a cabeça femoral mantem-se relativamente esférica com boa congruência articular, sendo,  provavelmente, as outras deformidades supracitadas (subida do grande trocânter, colo curto e uma deformidade em varo), as responsáveis pela artrose  precoce16,22,23.

Relativamente às limitações do presente estudo, os autores destacam o facto de se tratar de um estudo retrospectivo, inerentemente limitado em termos  da avaliação clínica (impossibilidade de classificar os doentes segundo PROMs - Patient-reported outcome measures, como por exemplo o Harris Hip  Score). Todavia podemos perceber que houve uma melhoria subjetiva dos parâmetros clínicos. Em termos radiográficos é de notar que as radiografias não foram efetivadas de forma estandardizada (nem calibradas) pelo que os resultados obtidos podem não ser totalmente exatos. Os resultados devem  ser, portanto, interpretados com alguma reserva, no entanto verifica-se indubitavelmente uma melhoria dos parâmetros radiográficos.

CONCLUSÃO

As patologias que cursam com deformidades complexas da extremidade proximal do fémur, e que se manifestam por coxa vara e colo curto com subida do grande trocânter, exigem a sua identificação precoce tendo em vista a melhoria da clínica e diminuição do risco de progressão para osteoartrose.

A osteotomia de valgização intertrocantérica com alongamento relativo do colo e distalização do grande trocânter restaura a anatomia e biomecânica  da articulação coxofemoral, com melhoria franca da claudicação por Trendelenburg. Este procedimento corrige uma possível hipometria, em até 10mm,  aumenta a função dos abductores e diminui a energia utilizada durante a marcha.

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