DISCUSSÃO
A síndrome de Grisel é uma patologia rara, caraterizada pela subluxação atraumática da articulação atlanto-axial1,3,4,7. Foi inicialmente descrita por Sir Charles Bell em 1830 num paciente com sífilis com ulceração faríngea, no qual durante a autópsia se verificou compressão medular devido a subluxação atlanto-axial por erosão do ligamento axial transverso8,5,6,3. Em 1930, Grisel reportou uma subluxação rotatória espontânea da articulação atlanto-axial após uma faringite, não associada com trauma ou doença óssea e atribuiu-lhe o seu nome1,3.
A síndrome de Grisel é mais comum entre os 5-12 anos de idade sem dominância de género8,5,1,2.
Deve ser suspeitada após uma inflamação da nasofaringe ou ouvido ou procedimentos cirúrgicos de otorrinolaringologia, como adenoidectomia, mastoidectomia, implantação coclear, uvulectomia ou timpanoplastia3,1,9,10,11.
Segundo a literatura, 55% dos casos são secundários a infeções e 45% dos casos pós-cirurgia. No que respeita às intervenções cirúrgicas, a adenoidectomia, cirurgia aos ouvidos, adenotonsilectomia e timpanoplastia foram os procedimentos cirúrgicos mais estabelecidos como causa primária3,4. O nosso paciente tinha sido submetido a adenoidectomia e miringotomia simples bilateral.
Doenças congénitas como a síndrome de Marfan e síndrome de Down são mais suscetíveis a subluxação atlanto-axial não traumática devido à laxidez ligamentar e aumento da distância atlanto-axial no síndrome de Down7,4,5,12.
A fisiopatologia não está bem esclarecida, mas a hipótese mais aceite envolve a disseminação da inflamação para os ligamentos atlantoaxiais pelas anastomoses entre os vasos linfáticos e os vasos faringovertebrais1,4. A veia faringovertebral atravessa a fáscia faringobasilar e drena no plexo periodontal, que por sua vez drena nos seios venosos epidurais cervicais superiores. Esta via de disseminação hematogénea dos mediadores inflamatórios causa congestão sinovial e vascular, inflamação peri-ligamentar e edema inflamatório, resultando em laxidez dos ligamentos transverso e alar, podendo levar a subluxação e progredir para instabilidade da coluna cervical com alterações neurológicas1-5,8,12,13. Pode ainda verificar-se um enfraquecimento adicional das inserções do ligamento transverso causado pela descalcificação de C1 e C2 devido à inflamação3,10.
A classificação de Fielding é a classificação mais utilizada para descrever os diferentes graus de subluxação atlanto-axial não traumática, em que o grau de subluxação e instabilidade aumenta do tipo I para o IV1,3,4. No tipo I, o atlas está rodado na odontóide mas não há luxação do atlas. No tipo II, verifica-se uma luxação anterior mínima do atlas (3-5mm). No tipo III, ocorre rotação do atlas com luxação anterior superior a 5mm. No tipo IV, ocorre luxação posterior do atlas.
O tipo I e II são os subtipos mais comuns, usualmente ocorrem sem défices neurológicos e os pacientes são tratados de forma conservadora. Os tipos III e IV são mais raros, estão associados a défices neurológicos devido a compressão medular, e o tratamento é cirúrgico1,2,3.
Clinicamente, a principal queixa dos pacientes é o torcicolo, mas também podem apresentar mobilidade cervical limitada e dolorosa, rigidez cervical e cefaleia2,4,13. A dor e a movimentação cervical limitada caracterizam a posição de Cock-Robin - a cabeça é rodada numa direção e inclinada na direção oposta. Isto desenvolve um torcicolo paradoxal - o espasmo do esternocleidomastóideo provoca deformidade com a cabeça rodada ipsilateralmente e inclinada contralateralmente4. A palpação da apófise espinhosa de C2 é um forte indicador de subluxação atlantoaxial (sinal de Sudeck)5. Embora menos de 15% dos pacientes apresentem sinais neurológicos, estes podem variar de radiculopatia a tetraplegia e morte por falência respiratória devido a compressão medular3,4.
O diagnóstico da síndrome de Grisel implica uma grande suspeição clínica. Os indicadores inflamatórios não são específicos4. A avaliação radiológica permite o diagnóstico precoce da subluxação de C1-C2. Nos perfis laterais verifica-se um aumento da distância atlanto-odontóide4,13. No perfil antero-posterior trans-oral verifica-se uma assimetria e apagamento das superfícies articulares de C1-C2, um aumento de uma massa lateral C1 e redução do lado contralateral. Os exames radiológicos podem ser difíceis de obter devido à rotação da coluna cervical e cabeça1,2,13.
A tomografia computorizada (TC) da transição craniocervical é o exame goldstandard para estabelecer o diagnóstico da subluxação atlantoaxial4. O paciente deve manter a cabeça em posição neutra. Nas imagens axiais, é realizada a medição do intervalo atlantodental, cujos valores normais são até 5mm em crianças. Uma lesão do ligamento transverso resulta num aumento desta distância1,4. A TC permite orientar o tratamento ao estabelecer o grau da classificação Fielding1,4. A TC dinâmica pode causar complicações neurológicas12.
A ressonância magnética é indicada para detetar os nódulos linfáticos superficiais e profundos, alterações dos tecidos moles e nervosos, bem como para avaliar a estabilidade dos ligamentos alar e transverso1,2.
O tratamento dos subtipos I e II é inicialmente conservador e inclui antibiótico, relaxante muscular e anti-inflamatório durante uma semana e imobilização com colar cervical por quatro semanas1,2,4. Em alguns pacientes, pode-se aplicar uma manobra de redução manual sob anestesia13. Pacientes com subluxações tipo III e IV geralmente necessitam de repouso com tração cervical, seguido de imobilização com halo brace por doze semanas. Em casos mais raros, em que ocorre compressão medular ou em que o tratamento conservador falha, a fixação cervical rígida de C1-C2 ou C1-C2-C3 é a melhor opção cirúrgica porque oferece estabilidade medular imediata em todos os planos1,2,4,10.
Nos casos reportados em que o atraso do diagnóstico foi superior a três semanas, verificou-se falha do tratamento conservador e risco elevado de evolução para formas mais graves2,4. Em pacientes pós-cirurgia, o tratamento conservador tem sucesso em 93% dos casos3.