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Volume 29, Fascículo I   Desluvamento anterior do côndilo umeral externo num adolescente de 13 anos. Uma entidade clínica rara e de difícil diagnóstico
Desluvamento anterior do côndilo umeral externo num adolescente de 13 anos. Uma entidade clínica rara e de difícil diagnóstico
Desluvamento anterior do côndilo umeral externo num adolescente de 13 anos. Uma entidade clínica rara e de difícil diagnóstico
  • Caso Clínico

Autores: Cláudia de Oliveira; Ana Marta Coelho; Delfin Tavares; Manuel Cassiano Neves
Instituições: Hospital CUF Descobertas; Hospital Beatriz Ângelo; Serviço de Ortopedia, Hospital do Litoral Alentejano
Revista: Volume 29, Fascículo I, p40 a p47
Tipo de Estudo: Estudo Diagnóstico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2019-04-20
Revisão: 2020-01-19
Aceitação: 2020-02-20
Publicação edição electrónica: 2021-11-22
Publicação impressa: 2021-11-22

INTRODUÇÃO

Lesões que acometem exclusivamente o capítulo são raras na infância e adolescência, correspondendo a menos de 1% da patologia traumática do úmero distal1,2.

O desluvamento anterior do côndilo externo do úmero é uma lesão muito rara com apenas um caso descrito na literatura4.

O diagnostico é extremamente difícil já que o fragmento distal é composto sobretudo por cartilagem articular e cartilagem não ossificada do centro de ossificação secundário do côndilo externo, estruturas que não são visíveis na radiografia.

Para que estas lesões não passem desapercebidas e o tratamento correto seja instituído com brevidade, é importante que o clínico tenha um alto nível de suspeita e seja criterioso na eleição e avaliação de meios complementares diagnósticos.

Com a introdução da tomografia computorizada e ressonância magnética, a artrografia com contraste fica reservada para situações em que o acesso a outro meios auxiliares de diagnostico é difícil e em que a suspeita de uma lesão osteoarticular passível de tratamento cirúrgico é alta.

CASO CLÍNICO

Os autores apresentam um caso de um rapaz de 13 anos de idade, praticante de skate, que se apresentou no Serviço de Urgência por dor e impotência  funcional do cotovelo direito após ter sofrido uma queda sobre a mão direita com o membro superior em extensão. No serviço de atendimento primário  o doente apresentava uma tumefação da região anatómica em questão e a exploração física foi impossibilitada pela dor. Foi descartada patologia  neuro vascular associada à lesão traumática.

Nos exames radiológicos não foi valorizada patologia óssea traumática, pelo que o diagnóstico feito foi o de uma contusão do cotovelo. O doente  foi então imobilizado com uma suspensão braquial com o cotovelo a 90º de flexão e referenciado a uma consulta de ortopedia para reavaliação (Figura 1).

Passados dez dias do evento traumático, o doente foi observado na consulta de ortopedia mantendo um quadro de aumento de volume e dor ao nível do cotovelo direito. Ao exame objetivo constatou-se o aumento de volume associado a uma rigidez articular cerrada que não permitiu qualquer tipo  de mobilização em particular da prono-supinação. Como meios auxiliares de diagnostico foram requisitadas novas radiografias que devido ás queixas dolorosas que o doente apresentava foram difíceis de executar e consideradas não adequadas. Apesar das limitações constatou-se na incidência antero-posterior uma fratura - descolamento epifisário da metáfise proximal do rádio que parecia  relativamente bem alinhada. Na incidência em perfil radiográfica visualizou-se uma “tear drop - lágrima” de diâmetro aumentado e de contorno irregular e uma fratura da extremidade proximal do rádio com um fragmento anterior, associada a ligeira sub-luxação posterior da cabeça do rádio (Figura 2).

Atendendo á discrepância entre o quadro clinico e as imagens radiográficas foi pedida uma tomografia axial computorizada tendo em vista um melhor  esclarecimento da fratura (Figura 3).

Era notório a fratura da cabeça do rádio tipo IV de Salter & Harris confirmando-se a sub-luxação posterior da cabeça do rádio. A apresentação de uma  fina lamina anterior à metáfise umeral de densidade osteo-cartilagiena fez suspeitar da presença de um corpo livre intra-articular.

O doente foi operado no dia seguinte, por via lateral de Kocher e após artrotomia, constatou-se que para alem da fratura da tacícula radial o doente  apresentava o côndilo umeral totalmente desnudado da cartilagem articular, compatível com um desluvamento anterior do côndilo umeral (Figura4). O fragmento, com cerca de 2 cm, encontrava-se no compartimento anterior da articulação.

Ambas as fraturas foram reduzidas anatomicamente e a osteossíntese foi feita com recurso a parafusos canulados tipo Herbert de 2 mm na cabeça do rádio e no côndilo umeral. Devido á instabilidade postero-externa foi feita a reconstrução ligamentar por âncoragem do ligamento lateral externo (Figura 5).

O doente foi imobilizado com tala antálgica cerca de 2 semanas tendo iniciado a mobilização ativa após ter sido retirada a imobilização e iniciou fisioterapia ás 5 semanas. Na fase inicial teve alguma dificuldade na recuperação da mobilidade articular que foi feita de forma lenta e gradual.

Ao fim de dois anos de seguimento o doente apresenta uma mobilidade articular completa do cotovelo e radiologicamente apreciava-se consolidação total da fratura. Nas radiografias não eram visíveis sinais de necrose avascular (Figuras 6 e 7).

DISCUSSÃO

Após uma história clínica detalhada, onde o mecanismo que originou a lesão é conhecido, o cirurgião inicia o seu raciocínio diagnóstico. Por vezes a dor é intensa e dificulta a exploração física, sendo que a única informação que aporta ao clínico é a da possibilidade de um traumatismo de elevada energia. O primeiro aspeto a considerar e que obriga o cirurgião a pensar na possibilidade de uma fratura oculta é a discrepância entre o quadro clínico e as imagens radiográficas. Sabemos que na criança a extremidade distal do úmero se apresenta cartilagínea pelo que nem sempre a radiografia é objectiva no diagnóstico.

Apesar disso o meio auxiliar de diagnóstico de primeira linha é a radiografia. É de suma importância avaliar uma incidência em anteroposterior e outra de perfil, feitas de forma correta. As incidências obliquas podem ser úteis em particular na avaliação das fracturas do côndilo externo.

Sugerimos uma análise dos exames sistematizada segundo a metodologia ABCS5. É necessário confirmar que o exame é adequado (A) e feito de forma correta, O cirurgião deve estar familiarizado com o padrão de desenvolvimento do cotovelo.

É extremamente útil conhecer a idade do aparecimento das estruturas osteoarticulares do cotovelo na infância e adolescência, para poder distingui-lo de possíveis alterações anómalas. O cotovelo tem seis centro de ossificação secundaria. O primeiro a ser visível nas radiografias, aos dois anos de idade, é o capítulo, seguido do rádio, epicôndilo umeral interno, tróclea, olecrânio e epicôndilo umeral externo. Surgem com aproximadamente dois anos de intervalo2.

Na incidência de perfil, de um cotovelo saudável, ao traçar uma linha longitudinal ao eixo do radio, esta deve intersetar o centro do capítulo, seja  qual for a posição do cotovelo, é a chamada linha radiocapitelar. Já a linha imaginária adjacente à cortical umeral deve intersectar o terço anterior do capítulo. Também nesta incidência se espera encontrar o sinal da ampulheta. O angulo entre a diáfise e o côndilo umeral externo deve ser de 45º.

A letra “B” (bones) refere-se à solução de continuidade óssea do periósteo, e por tanto, à avaliação de fraturas ou outra alteração do tecido,  como possíveis alterações do trabeculado ósseo.

Em crianças a congruência articular, letra “C”, e dos centros de ossificação secundários é de suma  importância já que a maioria das fraturas atinge as placas de crescimento dificultando o diagnóstico.

A letra “S” faz referência à avaliação dos tecidos moles (soft tissue). O sinal da bolsa de gordura (fat pad sign), melhor apreciado na incidência  em perfil, denuncia uma efusão articular, e muito provavelmente patologia traumática. Este pode ser o único sinal radiográfico de uma fratura do cotovelo na infância.

No caso que apresentamos a radiografia inicial se observada com atenção mostra já alguns sinais de fratura da cabeça do rádio não valorizados, e um olhar mais atento mostraria uma fina lâmina de maior densidade no compartimento anterior. Atendendo a que o doente não foi visto por um ortopedista é lícito que estes dados não tenham sido valorizados inicialmente. Todavia nos doentes em  que existe uma discrepância entre o quadro clínico e os exames radiográficos recomenda-se sempre uma 2ª observação em consulta de ortopedia pois não é infrequente um mecanismo de luxação posterior que reduz espontaneamente, pelo que quando o doente é observado no serviço de urgência a lesão é de difícil valorização.

Neste caso pensamos que o mecanismo de lesão terá provocado o impacto da cabeça do rádio contra o capítulo levando á fratura da mesma, seguido de rotura do ligamento lateral externo e eventual desluvamento da cartilagem do côndilo durante a redução espontânea.

Na altura da 2ª observação e perante a rigidez articular não coincidente com a radiografia inicial optou-se por realizar novos exames imagiológicos. A tomografia computorizada ajudou o cirurgião sénior a definir a gravidade do problema e a decidir não protelar a cirurgia. Em caso de diagnóstico não definido ao nível do cotovelo e perante a dúvida da presença ou não de fratura articular, com implicações na decisão terapêutica, pode estar indicada a artrografia pré-operatória, que nos dá uma definição correta das estruturas cartilagineas3,4.

A ressonância magnética tem a vantagem de definir as estruturas cartilaginosas sem expor as crianças a radiação pelo que quando existe essa possibilidade deverá ser o método de eleição.

Neste caso optou-se pela reconstrução óssea, cartilaginea e ligamentar com excelente resultado clínico aos 2 anos de pós-operatorio.

A fratura desluvamento anterior do côndilo externo do úmero num adolescente é uma situação muito rara constituindo este o 2º caso descrito na literatura. Exige uma suposição alta no seu diagnóstico e o tratamento consiste na redução anatómica da fratura.

Referências Bibliográficas

1. Beaty J, Kasser J. Rockwood and Wilkins’ Fractures in children. 6 edição. Lippincott Williams and Wilkins; 2006.

2. Herring J. Tachjian’s Pediatric Orthopaedics. 5 edição. Elsevier; 2014.

3. Agins HJ, Marcus NW. Articular cartilage sleeve fracture of the lateral humeral condyle capitellum: a previously undescribed entity. J Pediatr Orthop. 1984; 4 (5): 620-622

4. Drvaric DM, Rooks MD. Anterior sleeve fracture of the capitellum. Journal Orthopedics Trauma. 1990; 4 (2): 188-189

5. Jacob A, Khan SHM. Radiology of acute elbow injuries. British Journal Hospital Med (London). 2010 Jan; 71 (1): 6-9

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