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Volume 29, Fascículo II   Avaliação biomecânica do desempenho de prótese anatómica na Artroplastia Total do Ombro
Avaliação biomecânica do desempenho de prótese anatómica na Artroplastia Total do Ombro
Avaliação biomecânica do desempenho de prótese anatómica na Artroplastia Total do Ombro
  • Artigo Original

Autores: Margarida Bola; José Simões; António Ramos
Instituições: Grupo de Investigação em Biomecânica, TEMA, Departamento de Engenharia Mecânica, Universidade de Aveiro; ESAD - Escola Superior de Artes e Design, Matosinhos
Revista: Volume 29, Fascículo II, p110 a p123
Tipo de Estudo: Estudo Diagnóstico
Nível de Evidência: Nível III

Submissão: 2020-03-29
Revisão: 2021-01-03
Aceitação: 2021-03-17
Publicação edição electrónica: 2022-04-01
Publicação impressa: 2022-04-01

INTRODUÇÃO

O ombro é das articulações biomecanicamente mais complexas do esqueleto humano, o que faz com a artroplastia total do ombro (ATO) também o seja. Um significativo número de artigos tem sido publicado sobre a ATO, abordando diferentes aspetos da articulação após artroplastia. Contudo, na revista da Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia só se verifica uma publicação, em 2010, referente à problemática da artroplastia do ombro1. Alguns poderão ser encontrados na revista congénere brasileira2-5. Muitos estudos apresentam a comparação de resultados clínicos entre a ATO e a artroplastia inversa do ombro (AIO)6-8. Outros apresentaram uma revisão crítica entre a prótese anatómica e a inversa relativamente a complicações  relacionadas com o implante, problemas de osteopenia e reabilitação funcional do ombro9,10. As condições preoperativas da glenoide foram objeto de revisão por alguns autores11, que referem que a avaliação da glenoide no contexto da ATO é  crítica e deve ter-se em consideração as variações de morfologia da glenoide, desgaste, inclinação e subluxação glenoumeral. Tem sido publicado um número significativo de artigos referente à prótese inversa12 e sobre revisões13. Knowles et al.14 avaliaram resultados clínicos e complicações de artroplastias de revisão do ombro entre a América do Norte e a Europa. A perda de fixação do componente da glenoide é uma das principais causas de falência da ATO15,16. A tipologia de prótese mais utlizada na artroplastia consiste em cimentar todos os componentes da glenoide17,18 com implantes de haste que, aparentemente, permitem melhores desempenhos do que os implantes de quilha19, e que são do tipo press-fit.

Alguns fatores são responsáveis pelo sucesso/insucesso da prótese, como os relacionados com a perda por descolamento do componente da glenoide15. Contudo, a falência da interface implante-cimento20 ou a fadiga e a fragmentação da camada de cimento de polimetilmetacrilato (PMMA)21 são os mais significativos. A utilização de hastes umerais não cimentadas ganhou maior preponderância, relativamente à cimentada, a partir do momento em que se observaram o descolamento e afundamento das hastes com grande frequência22.

O desempenho de artroplastias totais do ombro com componentes glenoides híbridos (Modular Hybrid®) e cimentados convencionais (Bio-Modular®) foi avaliado com média de 3.2 anos pós-operatório e com acompanhamento mínimo de 2 anos23. Os autores verificaram que no grupo dos componentes glenoides híbridos, estes estavam solidamente ancorados e só um apresentou instabilidade posterior. Foi possível observar novo osso formado em torno do pilar central. O primeiro estudo que analisou os resultados clínicos da mini haste da prótese Comprehensive® Humeral (Biomet®) foi realizado por Jost et al.24. Os resultados deste estudo evidenciam uma melhoria de amplitude de movimentos, abdução e rotação interna e externa, sem complicações pós-operatórias relativas ao implante. Recentemente, Schnetzke et al.25 apresentaram um estudo radiográfico com 52 pacientes com prótese umeral não cimentada de haste curta (Aequalis  Ascend Monolithic; Grenoble, França) que pode ser considerada na mesma categoria da prótese usada neste estudo. Os autores do estudo referem que os  sinais radiológicos de adaptação óssea foram devido aos efeitos de stress shielding.

Os estudos publicados, de uma forma genérica, referem, entre outros fatores, a importância do componente da glenoide no desempenho da ATO. A título de exemplo, o estudo de Lacroix et al.26 refere o descolamento do componente da glenoide como a causa dominante na ATO. É presumido que o seu  deslocamento é provocado pelas elevadas tensões na camada de cimento. Neste sentido, é ajustado que qualquer análise biomecânica referente à ATO deva ter em consideração uma análise detalhada e minuciosa das interfaces dos componentes da prótese com o tecido ósseo, onde as tensões de tração são extremanete perniciosas no mecanismo e fratura da ligação prótese-osso. Se elevadas, as tensões de compressão podem também provocar a fratura de trabéculas adjacentes à prótese, facilitando a mobilidade das suas componentes, umeral ou glenoide.

No estudo aqui descrito, avaliou-se, biomecanicamente, uma ATO usando a prótese Comprehensive® para confirmar que a hipótese de abdução a 90º é a posição mais crítica para a fixação do componente da glenoide e que como influencia as tensões/deformações e os micromovimentos em ambos os componentes da prótese, nas suas interfaces e no tecido ósseo adjacente.

MATERIAL E MÉTODOS

Para o efeito, fez-se o estudo recorrendo ao método dos elementos finitos (MEF), uma ferramenta de investigação científica utilizada frequentemente em estudos biomecânicos. A obtenção de informação como tensões e/ou deformações no interior de estruturas ósseas, ligamentares ou cartilagíneas, só é possível usando este tipo de ferramenta, ou outras idênticas. Todavia, esta terá de dar aos investigadores a necessária confiança científica  para “especular” sobre quaisquer resultados e, assim sendo, a utilização e modelos experimentais que replicam tão fiel quanto possível a verdadeiro  sistema anatómico torna-se essencial para validar o desempenho do modelo numérico.

Na fase inicial do estudo, foi incontornável desenvolver um modelo de elementos finitos capaz de reproduzir o modelo experimental da ATO. Deste modo, a validação foi realizada através da comparação das deformações numéricas com as extensões obtidas com o dispositivo experimental na  mesma região da localização das rosetas (sensores que medem extensões na superfície do objeto) nos elementos ósseos. Uma correlação entre resultados  acima de 0.80 foi definida como sendo suficiente para considerar o modelo numérico capaz de ser utilizado par responder às questões de investigação deste estudo. No caso estudado, obteve-se um valor de 0.88 e um erro quadrático médio (Root-Mean-Square-Error) de 69.7 µξ.

Para a montagem da ATO experimental utilizou-se ossos sintéticos compósitos de uma escápula e de um úmero do fornecedor Sawbones. Como foi referido, a prótese utilizada no estudo foi uma Comprehensive® da Biomet®, que inclui os componentes umeral e glenoide. A Figura 1 mostra todas as componentes da prótese.

A ATO com os ossos sintéticos foi realizada por um cirurgião com vasta experiência, seguindo a técnica de ajustamento por pressão, conforme indicado  no protocolo cirúrgico do fabricante da prótese. Esse modelo (Figuras 2 e 3) foi concluído com a colocação dos sensores (rosetas) para medir as extensões (equivalente às deformações no modelo  numérico) e cabos para simular as forças musculares a gerar no modelo de elementos finitos (em língua anglo-saxónica designa-se de Finite Element Model) (Figura 4). As características do modelo e a sua adequabilidade para simular o modelo experimental foi objeto de estudo publicado pelos autores27. Na Tabela 1 identifica-se os grupos musculares e as suas intensidades utilizadas nas simulações.

Para aferir o mecanismo de falência da prótese era determinante saber qual é a condição biomecânica de forças mais gravosas. Assim, tendo por base a  pesquisa bibliográfica, estudou-se a articulação em três posições de abdução, 45°, 60° e 90° e com as forças musculares identificadas na Tabela 1. As forças musculares consideradas foram determinadas através de um modelo multi-corpo do ombro intacto desenvolvido pelos autores, considerando um peso de 1 Kgf na mão. Estas intensidades estão de acordo com os resultados medidos in vivo numa articulação do ombro com prótese por Bergmann et al.28.

Através do MEF, simulou-se dois cenários pós-operatórios, que designamos de curto e longo prazo. No curto prazo considerou-se o primeiro momento como o sendo o do pós-operatório. Para esta situação considerou-se um atrito (fricção de Coloumb) de 0.3 entre o osso da glenoide e a prótese, ou seja, ocorre movimento (deslizamento) relativo entre a prótese e osso com atrito de 0.3, que depende das texturas das superfícies em contacto; 0.4 para a componente lisa da superfície do úmero; e 0.88 para a superfície porosa (rugosa). No cenário pós-operatório considerado de longo prazo, considerou-se que a prótese estava perfeitamente ancorada ao tecido ósseo circundante, ou seja, a prótese estava colada ao osso, não havendo qualquer tipo de atrito nem deslizamento relativo. Os resultados obtidos foram analisados em torno do componente da glenoide. Na Figura 5 identifica-se as regiões da glenoide, as interfaces e a posição dos pinos como referência para a apresentação dos resultados e sua discussão.

Os resultados analisados no componente da glenoide seguiram a metodologia utilizada por Gulotta et al.23. Assim, esta foi dividida em planos axial e coronal e as regiões de interesse estão identificadas de 1 a 4 no plano axial, e 5 a 8 no plano coronal. O úmero foi dividido nas regiões medial (M1 e M2), lateral (L1 e L1) e inferior (HU), de acordo com o estudo de Nagels et al.29.

RESULTADOS

No âmbito dos resultados obtidos, verifica-se que o ângulo de abdução influencia a localização do ponto de contato entre os dois componentes da prótese, ou seja, a sua localização depende do ângulo de abdução. No caso observado, o ponto de contato moveu-se em direção ao centro do componente da  glenoide, o que é favorável, permitindo aumentar os ângulos de abdução, sendo a região póstero-superior crítica na posição de abdução a 90°, provocando uma tensão de contato máxima da ordem de 70 MPa.

Dos três ângulos de abdução simulados, observou-se que a condição mais crítica para a biomecânica do ombro é para elevados ângulos de abdução (90° no presente caso). As principais deformações foram determinadas na periferia dos orifícios superior e central do osso glenoide (Figura 6). Como se pode  observar pela figura, as deformações compressivas são mais elevadas que as de tração para o componente do úmero. No caso do componente da glenoide, as deformações máximas de tração são idênticas às de compressão e situam-se no orifício de fixação superior (periferia superior e inferior) na região  A1, próximo do ponto de fixação central. Quando o ângulo de abdução aumenta, as deformações de tração e compressão também aumentam para ambos os componentes da prótese.

Cenários pós-operatórios

No curto prazo, as deformações de compressão da glenoide estão apresentadas na Figura 7. Os resultados de simulação a longo prazo indicam que as deformações compressivas estão principalmente entre 200 e 2500 µε nos planos axial e coronal. Tal indica que, a longo prazo, a prótese glenoide estará bem ancorada ao osso circundante e a integridade óssea é mantida, apesar da presença do implante. No curto prazo e no plano axial, as deformações compressivas situam-se entre 2500 e 25000 µε (regiões 3 e 4) e numa menor área a longo prazo. Este facto indica que após a fixação da prótese ao osso circundante, surgem regiões com aumento de densidade óssea (área verde) e outras em que  podem ocorrer falências por fadiga (área azul). Nas regiões 1 e 2 (próximas ao orifício da haste de fixação central), as deformações compressivas  são inferiores a -200 µε, o que pode indiciar que o osso não é suficientemente estimulado, podendo, de acordo com o conhecimento sobre o mecanismo  de remodelação óssea, ocorrer reabsorção e perda de massa óssea. No plano coronal foram observadas áreas de fixação com elevadas deformações  compressivas em torno da haste superior e do pino central, principalmente nas regiões posterior e superior, semelhante ao observado na simulação de  curto prazo. As deformações compressivas vão para além dos 4000 µε em algumas pequenas áreas em torno dos orifícios de fixação, o que significa que,  a longo prazo, pode haver a possibilidade de fratura óssea devido às elevadas deformações observadas.

As deformações compressivas da prótese umeral estão apresentadas na Figura 7. No úmero, a maioria das deformações compressivas estão na faixa das deformações fisiológicas do osso trabecular. Contudo, na região L1 podem ocorrer fraturas por fadiga na interface osso-implante porque as deformações podem atingir valores significativos da ordem de 25000 µε. As simulações numéricas também mostram possível adelgaçamento da cortical na mesma região, já que as deformações compressivas, na ordem de 0 a 200 µε, são relativamente baixas em relação às fisiológicas originando efeito stress shielding com possibilidade de perda de tecido ósseo. A possível inexistência de formação de osso novo próximo ao implante pode levar ao descolamento e a micromovimentos de maior amplitude do componente umeral.

Na região do úmero superior (US), verifica-se a existência de áreas em que o osso trabecular pode estar sob risco por fraturas espontâneas, uma vez  que as deformações compressivas excedem 25000 µε. Também existem áreas em que as principais deformações promovem a hipertrofia devido ao possível aumento de densidade óssea. Este facto pode ser relacionado com as linhas de concentração em torno da ponta, que são sinais de stress shielding. Na  análise de longo prazo, a maioria das deformações compressivas são fisiológicas e, consequentemente, a integridade óssea é mantida (entre 200 e 2500  µε). A região L1 aparenta ser uma região crítica, uma vez que pode colapsar por fadiga. No entanto, pode verificar-se o aumento de densidade óssea pelo efeito de remodelação óssea (área verde). É interessante notar que, a curto prazo (região L1), a região mais propensa à fratura (área azul) é uma região em que a remodelação óssea pode ocorrer a longo prazo (área verde). Tal significa que, se o osso tem capacidade de suportar as deformações a curto prazo, há a possibilidade de o mesmo se tornar mais resistente a longo prazo.

Micromovimentos na interface

Os micromovimentos são indicadores da maior ou menor propensão da prótese para se deslocar por afundamento e, consequentemente, provocarem a perda da ligação na interface a longo prazo. Os micromovimentos mais elevados foram observadas no ponto de fixação central do componente da glenoide, da ordem de 20 a 25 µm, que é considerado ideal para o crescimento e formação de tecido ósseo. Esses estão na mesma ordem de grandeza para os pinos de fixação em polietileno. Para além disso, os micromovimentos mais elevados na cavidade da  periferia superior (> 20 µm) e os menores na parte inferior (<15 µm) podem indiciar uma tendência para o fenómeno “rocking horse” (cavalo de baloiço) associado ao descolamento da glenoide. No entanto, os reduzidos micromovimentos da haste de fixação central (<30 µm) indicam que o componente glenoide está bem ancorado, o que evitará o seu descolamento. Os micromovimentos mais elevados do componente umeral foram observados no aspeto posterior (± 325 µm), sendo menores no aspeto lateral (± 250 µm).

DISCUSSÃO

Os resultados obtidos evidenciam que a posição em abdução de 90º é, do ponto de vista da biomecânica, a mais crítica. A componente hibrida da glenoide com haste central de titânio poroso permite boa estabilidade e fixação. Na avaliação da glenoide, verifica-se que existem algumas regiões críticas, principalmente a posterior-superior da cavidade. Devido à sua elevada rigidez, a haste (pilar) central não apresentou deformações significativas, o que pode provocar o efeito de stress shielding, e através do mecanismo e transferência de carga pode aumentar o descolamento da componente da glenoide, como observado clinicamente e referido em registos ortopédicos.

Observou-se que as deformações compressivas estão na sua maioria na faixa considerada fisiológica que, segundo Roberts et al.30, variam entre 200 e 2500 µε. Tal facto indica que a haste modular da glenoide Hybrid® usada neste estudo aparenta ser uma opção cirúrgica adequada para a fixação da glenoide, pois a densidade óssea é mantida dentro dos valores fisiológicos e de integridade estrutural óssea. Perto dos orifícios de fixação observamos deformações compressivas na ordem de 2500 a 4000 µε, o que significa que essas podem provocar hipertrofia, com consequente aumento da densidade óssea. Em algumas regiões, as deformações compressivas estão num intervalo de 4000 a 25000 µε, o que significa que pode ocorrer fratura das trabéculas ósseas (como na região 3), provocando instabilidade e descolamento da prótese.

Os resultados obtidos estão em sintonia com os resultados clínicos apresentados por Gulotta et al.23, uma vez que as deformações da cavidade  glenoide estão dentro das consideradas fisiológicas (≈ 200 a 2500 µε). A haste modular Hybrid® da glenoide é uma adequada opção cirúrgica para  a fixação não cimentada da glenoide porque não afeta a integridade da densidade óssea no interior da cavidade, como tem sido observado  radiograficamente22. O estudo apresentado por Gulotta et al.23 é, de acordo com o conhecimento dos autores, o único que apresenta resultados  clínicos sobre a prótese Comprehensive® com a componente glenoide modular Hybrid®. No entanto, algumas publicações clínicas sobre componentes cimentados da glenoide contemporâneos31-34, ou minimamente cimentados35-37, evidenciam reduzido risco de descolamento23. A maioria dos designs são  em polietileno, com a haste de fixação central com flanges para permitir a integração óssea, e com uma haste central de titânio para fornecer a rigidez necessária.

Os micromovimentos relativos que se estabelecem, inevitavelmente, entre o osso e o implante, é uma questão importante no mecanismo de fixação da  prótese. Leucht et al.38 verificaram a formação óssea sob tensão e ausência desta, com um aumento pronunciado quando havia micromovimentos da ordem de 150 µm. No entanto, o crescimento ósseo nem sempre ocorreu em torno dos implantes de superfície porosa23 e poderá não ocorrer para  micromovimentos superiores a 150 µm39. Os níveis de tensão/deformação/energia elástica, assim como a intensidade e frequência dos micromovimentos  podem ou não despoletar o mecanismo de remodelação óssea.

Wahab et al.40 determinaram micromovimentos máximos de 20.7µm, 18.3µm e 23.3µm na interface osso-cimento, respetivamente, em condições de carga centrada, superior-anterior e superior-posterior, numa prótese de quatro pinos integralmente feitos em polietileno. Esses resultados são semelhantes  aos aqui apresentados, mas as comparações devem ser realizadas com sentido crítico e de forma cuidadosa, pois as condições de simulação são certamente diferentes, nomeadamente a forma de carregar a prótese, o uso de cimento e o componente da glenoide em polietileno.

Suárez et al.41 fizeram uma análise usando o MEF para obter padrões de micromovimentos de componentes da glenoide não cimentados e sugerem  uma relação entre o design e o posicionamento da prótese. No entanto, os autores concentraram o estudo numa prótese com um suporte metálico (metalback) e com um parafuso metálico de fixação, o que dificulta qualquer comparação com o nosso modelo desenvolvido. Os micromovimentos mais elevados do componente umeral foram observadas no aspeto posterior (± 325 µm), enquanto que as menores foram observadas no aspeto lateral (± 250 µm). De acordo com alguma literatura, os micromovimentos da haste umeral são demasiado elevados para permitir o crescimento ósseo em toda a sua superfície39.

Wiater et al.42 apresentaram o primeiro estudo experimental com componentes da glenoide totalmente em polietileno e haste com ranhuras (Anchor Peg Glenoid da DePuy Orthopaedics) e com três métodos diferentes de fixação. Estes estudaram a fixação por ajustamento por interferência (também  conhecido por ajustamento por pressão), fixação híbrida (cimentado na haste da periferia e não cimentado na haste central) e fixação totalmente  cimentada. Os resultados desse estudo sugerem que a utilização de cimento nas hastes periféricas não melhora significativamente a fixação inicial quando comparada com a fixação por pressão (press-fit).

A fixação do componente da glenoide tem sido o centro de discussão da ATO43-45, mas a prótese umeral também tem introduzido algumas dúvidas46,47. No sentido de dar resposta a essas dúvidas e resultados clínicos, foram realizados alguns desenvolvimentos na fixação48,49 e no design da haste umeral50,51. Outro aspeto importante na fixação e estabilização da glenoide é o ponto de contato da artroplastia do ombro. O offsetting anterior tem sido associado a um aumento da área de contato e a uma diminuição do pico de pressão, reduzindo a instabilidade52. No modelo experimental, o ombro ficava em equilíbrio quando posicionado mais anteriormente, porque não se considerou a articulação escapulo torácica. Na análise numérica realizada e apresentada neste artigo, considerou-se alguma inclinação da haste umeral depois de se ter observado essa mesma  inclinação nas “artroplastias” in vitro realizadas no nosso laboratório. Por exemplo, Jost et al.24 verificaram uma incidência de 5% de inclinação da haste umeral nos ombros analisados, mas que não afetou os resultados observados.

Schnetzke et al.52, com base em estudo clínico com um componente umeral monolítico, Aequalis Ascend, afirmam que os resultados obtidos através  de radiografias, após 2 anos da cirurgia, indicavam sinais de stress shielding pelo adelgaçamento da cortical e perda de densidade óssea (82,7% na região medial, perto do calcar umeral). Estes resultados estão de acordo com nossos obtidos, uma vez que as simulações previram exatamente esses  efeitos referidos. No entanto, o componente umeral utilizado por Schnetzke et al. promove a transferência de carga, principalmente, nas regiões L1 e M1, enquanto a prótese Comprehensive® apresenta maiores tensões na região M1 e, consequente, maior carga transferida nessa região da prótese.

Morwood et al.53 realizaram um estudo clínico (follow-up de 27.3) comparativo entre hastes umerais curtas revestidas e não revestidas na região proximal. Estes observaram que as hastes não revestidas são mais propícias à perda de fixação, e em concordância com o estudo publicado por Casagrande et al.36. No nosso estudo, a prótese umeral utilizada é revestida na região proximal e as elevadas tensões, nomeadamente na ponta do implante, indicam a possibilidade de afundamento, que foi somente observado em um ombro (2.9% de um total de 34) no estudo clínico de Morwood et al.53. As deformações observadas no úmero proximal estão dentro da gama fisiológica, o que nos leva a crer que um componente de haste curta  revestida na sua região proximal é uma boa opção para a fixação não cimentada da componente umeral. Os micromovimentos do componente umeral registado são superiores a 250 µm em todos os aspetos (anterior, posterior, medial e lateral), e podem ser considerados muito elevados para estimular o crescimento ósseo. Contudo, esta constatação não foi observada clinicamente com implantes com revestimento na zona proximal24,27,53. Uma possível explicação para esta observação pode estar relacionada com os coeficientes de atrito considerados na simulação do contato entre a haste  umeral e o osso trabecular. Esta questão deve ser objeto de estudo futuramente.

O estudo desenvolvido e apresentado contém limitações de diversa ordem. A utilização de estruturas sintéticas encerra em si uma das maiores limitações quando se pretende análises qualitativas, e não têm a possibilidade de desenvolver qualquer mecanismo e remodelação óssea. A configuração das forças da biomecânica do ombro consideradas também é uma limitação. Por exemplo, não se contemplou o estudo escapulo torácico, nomeadamente o papel do músculo serratus anterior, que se assume como importante no processo de elevação lateral e de estabilização do ombro.

CONCLUSÃO

Este estudo permitiu confirmar que as tensões/deformações são elevadas em torno do componente da glenoide e, neste sentido, salvo as devidas  diferenças entre um resultado clínico e os numéricos/experimentais, existe, aparentemente, uma certa correlação. Ou seja, as elevadas tensões em torno  do componente da glenoide e nas suas interfaces podem ser justificativas para a prematura falência da prótese. Contudo, os elevados micromovimentos na componente do úmero podem também ser justificativos. Acreditamos que a interação entres estes elementos biomecânicos terá de ser considerada na análise do mecanismo da falência da prótese do ombro.

O modelo numérico desenvolvido permite avaliar, dentro de inerentes limitações e com necessário sentido crítico, o curto e longo prazo do desempenho  de próteses do ombro e, consequentemente, da ATO. Neste sentido, a ferramenta desenvolvida pode auxiliar a estudar os efeitos de posicionamento dos  componentes da prótese, e do ponto de vista clínico apoiar os cirurgiões no planeamento preoperativo, muito particularmente em cirurgias de maior  complexidade e de difícil decisão.

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