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Volume 29, Fascículo II   Uso de artroplastia invertida do ombro em doentes com lesão traumática do plexo braquial: A propósito de dois casos clínicos
Uso de artroplastia invertida do ombro em doentes com lesão traumática do plexo braquial: A propósito de dois casos clínicos
Uso de artroplastia invertida do ombro em doentes com lesão traumática do plexo braquial: A propósito de dois casos clínicos
  • Caso Clínico

Autores: Flávia Pinto Moreira; João Torres; Francisca Pinho Costa; Filomena Ferreira; Manuel Ribeiro da Silva; António Sousa
Instituições: Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Centro Hospitalar Universitário de S. João
Revista: Volume 29, Fascículo II, p124 a p130
Tipo de Estudo: Estudo Terapêutico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2020-03-11
Revisão: 2020-12-20
Aceitação: 2021-03-31
Publicação edição electrónica: 2022-04-01
Publicação impressa: 2022-04-01

INTRODUÇÃO

As lesões traumáticas do ombro, como fraturas do úmero proximal e luxações do ombro, são comuns em idosos e podem estar associadas a lesões do plexo braquial1-3. A artroplastia invertida do ombro (AIO) é cada vez mais usada no tratamento de fraturas do úmero proximal e luxações inveteradas do ombro associadas a ruturas maciças da coifa dos rotadores. O seu sucesso depende da função do músculo deltóide, sendo que quando há lesão do plexo braquial ou lesão do nervo axilar o uso da AIO não tem sido recomendado. Nestes casos, apenas algumas opções permanecem disponíveis, como artrodese do ombro ou artroplastia de ressecção, mas apresentam maus resultados funcionais4,5.

Neste artigo apresentamos dois casos clínicos de doentes com lesões traumáticas do ombro e consequente lesão do plexo braquial, tratados cirurgicamente com AIO.

DESCRIÇÃO DOS CASOS

Caso 1

Doente do sexo feminino, 76 anos, autónoma nas atividades de vida diária, mão direita dominante, foi observada na consulta externa de Ortopedia com queixa de omalgia esquerda e limitação funcional após queda da própria altura, 8 meses antes. A dor foi avaliada como 4/10. As radiografias e a tomografia computadorizada (TC) (Figura 1) demonstraram luxação anterior do ombro, inveterada. A ressonância magnética (RM) mostrou rutura completa dos tendões supraespinhoso, infraespinhoso e subescapular. O estudo eletromiográfico revelou lesão infraganglionar axonal dos troncos superior e médio do plexo braquial. A doente foi submetida a AIO (Figura 1).

No pós-operatório, o ombro foi imobilizado com uma suspensão braquial durante 4 semanas e após este período a doente iniciou exercícios de reabilitação. Após um ano de seguimento, a doente recuperou parcialmente o arco de mobilidade ativa (Figura 2): 90º de elevação frontal, 90º de abdução, 10º de rotação externa e rotação interna limitada ao nível do sacro. A dor foi avaliada como 0/10. No score de Constant Murley a doente pontuou 42 pontos e no score ASES pontuou 80 pontos. O estudo eletromiográfico de controlo demonstrou sequelas de lesão axonal grave dos nervos axilar, musculocutâneo, mediano e cubital, mas com reinervação muscular em curso. Durante o seguimento não houve episódios de instabilidade.

Caso 2

Doente do sexo feminino, 66 anos, autónoma nas atividades de vida diária, mão direita dominante, foi observada no Serviço de Urgência por omalgia esquerda e limitação funcional após queda da própria altura. Clinicamente apresentava o membro superior com total paralisia motora e sensitiva. O estudo radiográfico e a TC (Figura 3) demonstraram a presença de uma fratura cominutiva do úmero proximal com desvio medial da diáfise do úmero; além disso, também foi encontrado um pseudoaneurisma da artéria braquial. A doente foi submetida a AIO com reinserção das tuberosidades (Figura 4).

No pós-operatório, o ombro foi imobilizado com uma suspensão braquial durante 4 semanas e após este período a doente iniciou exercícios de reabilitação. Após um ano de seguimento, a doente recuperou parcialmente o arco de mobilidade ativa (Figura 5): 90º de elevação frontal, 30º de abdução, 10º de rotação externa e rotação interna limitada ao nível da face lateral da coxa. A dor foi avaliada como 0/10. No score de Constant Murley a doente pontuou 32 pontos e no score ASES pontuou 70 pontos. O estudo eletromiográfico de controlo demonstrou reinervação em curso dos troncos superior e médio do plexo braquial. Durante o seguimento não houve episódios de instabilidade.

DISCUSSÃO

A AIO tem excelentes resultados a médio e a longo prazo e tem sido cada vez mais usada no tratamento de fraturas do úmero proximal e luxações inveteradas do ombro. A estabilidade dos implantes e a recuperação funcional do doente dependem principalmente da função do músculo deltóide. Na literatura, a lesão do plexo braquial é uma contra-indicação formal para a AIO, devido ao elevado risco de episódios de instabilidade e maus resultados funcionais. Nestes casos, existem apenas algumas opções disponíveis, como a artrodese ou a artroplastia de ressecção, mas ambas com resultados pouco satisfatórios4,5.

Visser et al1 estudou as lesões nervosas após as fraturas do úmero proximal e encontrou perda axonal em 67% dos casos. Lesões nervosas isoladas foram observadas apenas em 14,7% dos casos e o nervo axilar foi o mais frequentemente afetado (58%). Em relação às lesões nervosas após a luxação anterior do ombro, observou-se perda axonal em 48% dos casos, e o nervo axilar foi o mais frequentemente envolvido (42%)3. Verificou-se um bom prognóstico destas lesões, havendo recuperação neurológica na maioria dos casos em 12 a 45 semanas2. Kosiyatrakul et al6 estudou uma série de 15 casos de luxações de ombro com lesão do plexo braquial e na maioria dos casos encontrou recuperação neurológica num período de 20 meses, exceto para os músculos intrínsecos da mão. Há também alguns relatos de casos de doentes com lesão do plexo braquial pré-operatória ou com lesão do músculo deltóide que foram submetidos a AIO, com bons resultaltados clínicos e funcionais. Kurowicky et al7  relatou um caso de um doente idoso com paralisia traumática do plexo braquial após uma fratura-luxação do úmero proximal que foi tratado com uma AIO. Lädermann et al8 mostrou bons resultados funcionais em doentes submetidos a AIO e que apresentavam lesão do músculo deltóide; apenas 2 dos 49 doentes com lesão do músculo deltóide sofreram luxações do ombro em 3 anos de seguimento pós-operatório.

Nos dois casos aqui apresentados, a AIO foi utilizada no tratamento de uma fratura do úmero proximal e de uma luxação inveterada do ombro, ambas com lesão pré-operatória do plexo braquial. Na opinião dos autores, a medialização da diáfise do úmero na fratura proximal do úmero e a compressão causada pela cabeça do úmero na luxação do ombro contribuiam para um dano repetitivo do plexo braquial. A realização da AIO permitiu interromper este dano repetitivo do plexo braquial e auxiliou no controlo álgico, permitindo a mobilização precoce do ombro. Em ambos os casos, as doentes referiram apresentar boa qualidade de vida, sem dor, e um arco de mobilidade ativa aceitável, sem luxação observada durante o seguimento. Esses resultados superam claramente as outras opções disponíveis. Os estudos eletromiográficos no pós-operatório mostraram sinais de reinervação o que pode explicar a progressão observada no arco de mobilidade ativa.

Concluindo, na opinião dos autores, a lesão do plexo braquial não deve constituir contra-indicação absoluta para o uso de AIO.

Referências Bibliográficas

1. Visser CP, Coene LN, Brand R, Tavy DL. Nerve lesions in proximal humeral fractures. J Shoulder Elb Surg. 2001; 10 (5): 421-427

2. Visser CP, Tavy DL, Coene LN, Brand R. Electromyographic findings in shoulder dislocations and fractures of the proximal humerus: comparison with clinical neurological examination. Clin Neurol Neurosurg. 1999; 101 (2): 86-91

3. Visser CP, Coene LN, Brand R, Tavy DL. The incidence of nerve injury in anterior dislocation of the shoulder and its influence on functional recovery. A prospective clinical and EMG study. J Bone Joint Surg Br. 1999; 81 (4): 679-685

4. Chalmers PN, Keener JD. Expanding roles for reverse shoulder arthroplasty. Current Reviews in Musculoskeletal Medicine. 2016; 9 (1): 40-48

5. Familiari F, Rojas J, Nedim Doral M, Huri G, McFarland EG. Reverse total shoulder arthroplasty. EFORT Open Rev. 2018; 3 (2): 58-69

6. Kosiyatrakul A, Jitprapaikulsarn S, Durand S, Oberlin C. Recovery of brachial plexus injury after shoulder dislocation. Injury. 2009; 40 (12): 1327-1329

7. Kurowicki J, Triplet JJ, Berglund DD, Zink T, Rosas S, Levy JC. Use of a Reverse Shoulder Arthroplasty Following a Fracture-Dislocation with a Brachial Plexus Palsy: A Case Report. JBJS Case Connect. 2018; 8 (2): 36

8. Lädermann A, Walch G, Denard PJ, Collin P, Sirveaux F, Favard L, et al. Reverse shoulder arthroplasty in patients with pre-operative impairment of the deltoid muscle. Bone Joint J. 2013; 95-B (8): 1106-1113

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