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Volume 29, Fascículo II   Percurso Reconstrutivo em Doente com Hemimelia Fibular
Percurso Reconstrutivo em Doente com Hemimelia Fibular
Percurso Reconstrutivo em Doente com Hemimelia Fibular
  • Caso Clínico

Autores: Eduardo Salgado; Cristina Alves; Inês Balacó; João Cabral; Gabriel Matos
Instituições: Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico - CHUC, EPE
Revista: Volume 29, Fascículo II, p154 a p164
Tipo de Estudo: Estudo Terapêutico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2019-11-21
Revisão: 2020-01-21
Aceitação: 2020-12-20
Publicação edição electrónica: 2022-04-01
Publicação impressa: 2022-04-01

INTRODUÇÃO

A Hemimelia Fíbular ocorre entre 1:135 000 e 1:50 000 nascimentos, sendo a deficiência congénita mais comum de ossos longos e inclui um largo espectro  de anomalias congénitas1. Caracteriza-se por gravidade variável de hipoplasia fibular com ou sem alterações anatómicas do membro inferior (Figura 1)2. Atualmente, não há nenhum fator genético ou ambiental responsável para o desenvolvimento desta patologia3.

Clinicamente, carateriza-se por dismetria dos membros inferiores, encurvamento anteromedial da tíbia, deformidade em valgo do joelho, equino-valgo do pé e tornozelo e ausência de raios laterais do pé4. A dismetria é consequência da inibição do crescimento da tíbia e do pé, embora muitos destes doentes possam ter também uma inibição do crescimento do fémur5.

A decisão entre cirurgia reconstrutiva versus cirurgia de amputação é difícil e ainda é alvo de controvérsia na literatura3. O objetivo primário no tratamento da hemimelia passa por restaurar o normal alinhamento e comprimento dos membros inferiores com um pé plantígrado estável1.

Este trabalho pretende demonstrar a abordagem, planeamento e reconstrução cirúrgica realizados no tratamento de doente com dismetria dos membros inferiores por Hemimelia Fíbular.

DESCRIÇÃO DE CASO

Doente, sexo feminino, avaliada em primeira consulta de Ortopedia Infantil por dismetria dos membros inferiores, em contexto de Hemimelia Fíbular direita. À data da primeira Consulta com a equipa que a viria a tratar, a doente tinha 11 anos de idade e apresentava dismetria dos membros inferiores de 8 cm (Figura 2) (restantes características clinicas na Tabela 1), com uma dismetria previsível à maturidade [calculada pelo  Paley Multiplier Method6] de aproximadamente 9,52cm, a que acresceria 1.5cm correspondentes à diferença de altura do pé.

Exames complementares de diagnóstico:

-Panganograma: Dismetria dos membros inferiores de 8cm (Membro Inferior Direito 68.6 cm: Fémur 41,4 cm, Tíbia 27.5 cm; Esquerdo 76.8 cm: Fémur  42.5 cm, tíbia 34.2 cm). Ausência da fíbula direita (Figura 3).

- Rx joelho bilateral: fises abertas bilateralmente. Ausência de fíbula direita (Figura 4).

- Rx pé direito em carga: ausência de 2 raios laterais (Figura 5).

- RMN joelho: Ausência do Ligamento Cruzado Anterior (LCA) e côndilo lateral hipoplásico (Figura 6).

Classificação:

Foram utilizadas as 3 classificações mais reconhecidas na literatura (Achterman-Kalamchi, Birch e Paley), apresentadas na Tabela 2.

Tratamento:

Discutiu-se com a doente e familiares os riscos e benefícios de três opções terapêuticas (amputação ou prótese de extensão ou reconstrução), tendo a  família optado pela cirurgia reconstrutiva.

Definiu-se um plano reconstrutivo de vida individual que consistiu em:

  1. Epifisiodese do membro contralateral
  2. Alongamento da tíbia
  3. Alongamento do fémur

A primeira cirurgia foi realizada aos 11 anos (fevereiro 2013): epifisiodese percutânea com broca do fémur distal e tíbia proximal esquerdos (Figura 7). A evolução pós-operatória decorreu sem intercorrências.

Em fevereiro de 2015, com 13 anos, foi submetida a cirurgia reconstrutiva da perna direita, com descompressão do nervo peroneal, ressecção da  banda fibrosa fibular, alongamento do gastrocnemius tipo vulpius + corticotomia da tíbia proximal e aplicação de fixador circular com pé incluído (2  anéis proximais + 2 anéis distais + pé com calcâneo e metatarsos distais). O pós-operatório imediato decorreu sem intercorrências, com início precoce de fisioterapia para mobilidade e fortalecimento do joelho e coxa. Iniciou alongamento aos 10 dias pós-operatórios, 0.75 mm/dia (0.25mm, 3id). Ao fim de 13 meses foi retirado o fixador externo, tendo sido conseguido um alongamento de 7.5cm, com índice de consolidação de 1.86 meses/cm (Figura 8). Durante a evolução, apresentou 3 episódios de complicação com infeção dos cravos distais, tratados com antibioterapia com ciprofloxacina.

Após o alongamento e extração do fixador externo, a doente, com 14 anos, ainda mantinha uma dismetria residual de 3cm (Figura 9). Em maio de 2017, com 15 anos, optou-se por completar o seu plano reconstrutivo, realizando-se corticotomia do fémur direito e encavilhamento anterógrado com cavilha magnética (Precice) para alongamento do fémur direito. Alongamento de 0.7mm/dia, e aos 2 meses do pós-operatório apresentava um alongamento de 2cm (Figura 10). Não se verificaram intercorrências durante o seguimento e aos 5 meses do pós-operatório apresentava o regenerado consolidado.

Aos 16 anos, realizou-se uma última cirurgia (jullho 2018) - extração da cavilha magnética, que decorreu sem complicações.

Atualmente, com 18 anos, apresenta membros inferiores bem alinhados com dismetria de 3 mm por encurtamento residual do membro inferior direito (alongamento total de 9.5cm) (Figura 11). Não tem limitações nas atividades de vida diária, faz desporto e apresenta uma pontuação Kidscreen-10 de 49/50 (Figura 12).

DISCUSSÃO

A Hemimelia Fibular é uma patologia rara tendo diversas formas de apresentação, que pode variar desde dismetria ligeira da perna a deformidades  graves de todo o membro inferior. É portanto aceitável, que haja mais do que uma estratégia para o tratamento desta condição1.

As principais opções terapêuticas são: o tratamento reconstrutivo ou a cirurgia ablativa (amputação). A maioria dos autores concorda que a cirurgia reconstrutiva é o tratamento preferível nos doentes com dismetria ligeira a moderada e deformidades  ligeiras do pé. Os casos mais controversos são aqueles onde há deformidades mais grosseiras do pé e uma dismetria acentuada devido a uma maior  inibição do crescimento da tíbia ou uma inibição combinada do crescimento da tíbia e fémur7,8.

Os doentes e familiares deverão receber informação que lhes permita optar por uma solução de reconstrução ou protesização, pertencendo-lhes a  decisão final5. A grande vantagem da reconstrução cirúrgica é que o doente mantém a sensação do pé e contacto com o solo, providenciando equilíbrio e propriocepção9.

Este trabalho ilustra um caso clínico raro de uma reconstrução cirúrgica com início aos 11 anos de idade numa doente com Hemimelia Fibular direita  e com uma dismetria previsível à maturidade de 9.52cm + diferença de altura do pé de 1.5cm. Para este cálculo utilizou-se Multiplier Method, visto que a dismetria na Hemimélia Fibular segue uma curva de Shapiro 1a, ou seja, a inibição do crescimento mantém-se constante ao longo do tempo10.

Existem numerosas classificações para a Hemimélia Fibular, sendo que a maioria são limitadas por terem sido desenvolvidas numa altura em que a reconstrução cirúrgica não era bem-sucedida e em que a amputação era o tratamento primário ou único tratamento disponível. Exemplo destas  classificações são Achterman e Kalamchi, que descreve a quantidade da deficiência fibular, e a classificação de Birch que se baseia no número de raios presentes no pé5. Mais recentemente, Paley propôs uma classificação baseada na pato-anatomia e deformidade do tornozelo e articulação  subtalar. É a primeira classificação que contempla a opção cirúrgica. Para cada tipo da classificação de Paley é proposto um tratamento diferente,  independentemente do número de raios do pé e da dismetria dos membros inferiores5.

Segundo a classificação de Paley, estamos perante um caso de Hemimelia Fibular tipo 3A, ou seja, um caso com um equino-valgo fixo do tornozelo devido a uma má orientação da articulação do tornozelo.

O primeiro passo para o tratamento e reconstrução cirúrgica é definir um plano reconstrutivo de vida individual de forma a obter igualdade no  comprimento dos membros inferiores num menor número possível de cirurgias, bem como obter um pé plantígrado funcional com bom alinhamento dos  membros inferiores e articulações estáveis1.

Assim, foi delineado um plano individual que consistia em: 1º - epifisiodese do fémur distal e tíbia proximal do membro contra-lateral; 2º - alongamento da tíbia com fixador circular e 3º - alongamento do fémur com cavilha magnética.

A epifisiodese do membro contra-lateral deve ser planeada como técnica adjuvante dos alongamentos na tentativa de evitar dismetria futuras ou diminuir a dismetria total a corrigir9. O alongamento da tíbia faz parte da estratégia de tratamento para o tipo 3A de Paley, apresentando bons resultados4,5,11. O alongamento do fémur pode ser utilizado quando concomitantemente existe uma condição de fémur curto. A distração osteogénica através de cavilhas endomedulares magnéticas permite diminuir o risco de complicações comparativamente com os alongamentos tradicionais com fixador externo, nomeadamente o risco de infeção dos cravos, rigidez do joelho e fratura do regenerado12. Tem sido ainda demonstrado que estes dispositivos permitem uma carga mais precoce e levam a uma maior satisfação global dos doentes12.

Após 5 anos de tratamento e 3 intervenções cirúrgicas, obteve-se um alongamento total de 9.5cm para o membro inferior direito desta doente, que resultou em correção da dismetria, membros inferiores bem alinhados e um pé direito plantígrado funcional. Não tem quaisquer queixas de instabilidade do joelho direito. Atualmente, com 18 anos, a doente está muito satisfeita e não apresenta limitações nas  atividades de vida diária. Utiliza calçado comercial corrente, sem necessidade de adaptação, preferindo habitualmente calçado desportivo. Faz desporto escolar e dança contemporânea, e apresenta um Kidscreen-10 49/50. O KidScreen é um instrumento europeu transcultural e padronizado que permite avaliar dez dimensões da qualidade de vida das crianças e adolescentes13.

Concluímos assim que, em doentes com dismetrias associadas a malformações congénitas é essencial prever a diferença do comprimento dos membros  na maturidade e propor um plano reconstrutivo individual, com um menor número possível de cirurgias distribuídas ao longo dos anos de crescimento da criança / adolescente.

Referências Bibliográficas

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10. Shapiro F. Developmental patterns in lower-extremity length discrepancies. J Bone Joint Surg Am. 1982 Jun; 64 (5): 639-651

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12. Richardson SS, Schairer WW, Fragomen AT, Rozbruch SR. Cost Comparison of Femoral Distraction Osteogenesis With External Lengthening Over a Nail Versus Internal Magnetic Lengthening Nail. J Am Acad Orthop Surg. 2019 May; 27 (9): 430-436

13. The KIDSCREEN-10 Index[homepage on the Internet]. Kidscreen.org; Available from: https://www. kidscreen.org/english/questionnaires/kidscreen-10-index/.

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