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Volume 29, Fascículo III   Fraturas da omoplata em artroplastia invertida do ombro - A propósito de um caso clínico
Fraturas da omoplata em artroplastia invertida do ombro - A propósito de um caso clínico
Fraturas da omoplata em artroplastia invertida do ombro - A propósito de um caso clínico
  • Caso Clínico

Autores: Sérgio Azevedo; Manuel Brandão
Instituições: Hospital Cuf Torres Vedras
Revista: Volume 29, Fascículo III, p246 a p255
Tipo de Estudo: Estudo Terapêutico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2020-04-04
Revisão: 2021-02-28
Aceitação: 2021-03-31
Publicação edição electrónica: 2022-04-29
Publicação impressa: 2022-04-29

INTRODUÇÃO

A Artroplastia Invertida do Ombro (AIO) é uma técnica cirúrgica que revolucionou completamente o leque das opções terapêuticas no grupo de pacientes  portadores de rotura completa da coifa postero-superior com mau prognóstico de reparação, particularmente naqueles associados a omartrose.

Inicialmente uma técnica especialmente reservada para pacientes idosos, face aos excelentes resultados clínicos e funcionais que vinha a apresentar, veio progressivamente a alargar, ao longo dos tempos, as suas indicações1,2,3.

O fator idade começou a ser menos rígido, a ausência de lesões condrais gleno-umerais começou a ser permitida na sua aplicação e a incerteza quanto  ao prognóstico na reparação das roturas completas da coifa postero-superior deu lugar a uma crescente prevalência na utilização desta técnica1,2,3.

Também o leque das indicações para a realização de AIO foi alargando, sendo cada vez mais usada noutras patologias além da artropatia da coifa4,5.

Inevitavelmente, com a sua aplicação crescente, também a taxa de complicações aumentou exponencialmente (19% na Artroplastia Invertida primária e 69% nas revisões), com particular foco nas infeções, instabilidade, notching, descolamento protésico (principalmente do componente glenoideu), lesões neuro-vasculares e fraturas6,7,8.

No grupo das complicações por fratura em AIO, as fraturas do acrómio e da espinha da omoplata associam-se a um diagnóstico difícil, marcada  diminuição do resultado funcional final e são uma das maiores causas de dor e incapacidade pós-operatória6,9,10.

Nos pacientes submetidos a AIO as fraturas do acrómio e espinha da omoplata ocorrem numa prevalência entre os 3,1% e os 11,2%9,11,12.

Existem vários fatores de risco propostos que poderão aumentar o risco destas fraturas em pacientes submetidos a AIO, embora nenhum deles apresente uma aceitação universal irrefutável6,12,13,14,15.

Não existe consenso universal quanto ao seu tratamento6,11,12,13. O tratamento conservador apresenta elevada taxa de pseudoartrose6,12 e não existe nenhuma recomendação irrefutável quanto à melhor técnica cirúrgica6,10,12.

Os autores pretendem partilhar um caso clínico de fratura atraumática do acrómio em paciente submetida a AIO primária, ocorrendo 4 meses após a  cirurgia e não se identificando nenhum fator de risco importante, apesar do muito provável mecanismo de fratura de stress por fadiga óssea crónica.

A singularidade deste caso surge por se tratar de uma entidade pouco frequente e associada a morbilidade elevada, onde a nossa abordagem permitiu a  recuperação completa da nossa paciente.

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente do sexo feminino, com 75 anos de idade, perfeitamente ativa e autónoma.

Antecedentes pessoais relevantes de H.T.A., Diabetes Mellitus tipo 2 e Síndrome Depressivo crónico, medicada de acordo com estas patologias. Tinha realizado Osteodensitometria óssea 2 meses antes, apresentando condição de osteopénia.

História de omalgia direita crónica, evolução lenta, com vários episódios de agudização atribuídas a fenómenos de tendinite pelas várias opiniões  médicas colhidas ao longo do tempo.

Já tinha realizado vários ciclos de Fisioterapia e de “infiltrações do ombro”, inicialmente bem sucedidas, mas progressivamente com menor alívio sintomático e duração temporal.

Recorreu à nossa Consulta de Ortopedia, por falência completa da última abordagem conservadora, após medicação anti-inflamatória e analgésica oral, 40 sessões de Fisioterapia e “infiltração do ombro”, sem qualquer resultado positivo.

Apresentava quadro de omalgia direita permanente, agravada com a tentativa de mobilização desta articulação e marcado agravamento noturno, causando importante fragmentação do sono.

Referia perda funcional muito importante desta articulação, impossibilitando-a de realizar a maior parte das suas tarefas da vida diária com este membro superior direito.

Ao exame objetivo, destacava-se:

  • Atrofia evidente da fosseta do supra-espinhoso à direita.
  • Ombro direito pseudoparalítico (Flexão e Abdução ativas 15º; Rotação externa ativa 10º; Rotação interna ativa ao sacro).
  • Mobilização passiva do ombro direito muito dolorosa, mas de maior amplitude quando comparada com a mobilização ativa (Flexão e Abdução passivas  100º; Rotação externa passiva 20º; Rotação interna passiva L5).
  • Marcada insuficiência do supra e infra-espinhoso (testados pelo método de empty-cane rotação externa contra-resistência, respetivamente).
  • Lag sign e Hornblower negativos.
  • Boa aparente função do músculo Deltoide.

A paciente era portadora de radiografia simples (RX) do ombro em incidência antero-posterior (A.P.) (Figura 1) e relatório de Ecografia de partes moles do ombro direito, onde era concluída a presença de rotura completa do tendão supra-espinhoso.

Requisitada Ressonância Magnética (R.M.) sem contraste do ombro direito, revelando migração cefálica da cabeça umeral, rotura completa da coifa  postero-superior com retração Patte 2/3 (Figura 2) e atrofia muscular importante do supra e infra-espinhoso Goutallier 4 (Figura 3).

Proposta para a realização de Artroplastia Total Invertida do ombro direito, que aceitou, após os devidos esclarecimentos, realização dos exames pré-operatórios, aptidão pelo colega de Anestesiologia e assinatura do Consentimento Informado para a cirurgia.

Submetida a AIO em 03-09-2014, por abordagem supero-lateral (Prótese Johnson Delta X; Haste umeral não cimentada número 10; Metaglene fixada  Glenosfera standard tamanho 38; Polietileno +3 alta mobilidade), sem qualquer intercorrência (Figura 4).

Período pós-operatório perfeitamente linear, com apoio da Fisioterapia numa frequência trissemanal e obtenção de um arco de mobilidade indolor e  perfeitamente funcional aos 3 meses de operada (Flexão e Abdução ativas 160º; Rotação externa passiva 40º; Rotação interna ativa L5). Nesta altura  referia regressão completa do quadro de omalgia e padrão de sono perfeitamente normalizado.

Surge, pelos 4 meses de operada, com quadro de omalgia direita superior súbita, atraumática e associada a grande limitação funcional do ombro  direito (Flexão ativa 50º; Abdução ativa 40º; Rotação externa passiva 40º; Rotação interna ativa sacro).

Recorreu ao Serviço de Atendimento Permanente do nosso Hospital, tendo realizado RX do ombro em incidência A.P. (Figura 5) e análises sanguíneas para despiste de parâmetros de infeção, Hemograma, V.S. e PCR, encontrando-se estas últimas dentro dos limites da normalidade.

Teve Alta Clínica medicada sintomaticamente e foi aconselhada para observação na nossa Consulta de Ortopedia.

Observada no dia seguinte, tendo-se suspeitado de fratura do acrómio direito (Figura 6).

Realizou Tomografia Computorizada (T.C.) dirigida a esta articulação, que confirmou a presença de fratura do acrómio direito do tipo II, pela classificação de Levy16 (Figura 7).

Tratando-se de fratura coaptada (Figuras 8 e 9), com preservação do espaço acrómio-coracoideu, optámos por tratamento conservador, através de  imobilização do membro superior direito com Emosling de banda torácica (apenas era permitida a mobilização ativa dos dedos da mão, do punho e do  cotovelo homolaterais, por períodos).

Agendado controlo imagiológico em 1 semana, através de RX simples, revelando perda de redução da fratura com franca diminuição do espaço subacromial (Figura 10) e importante agravamento clínico.

Submetida a nova intervenção cirúrgica, em 28-01-2015, tendo-se procedido a redução cruenta e osteossíntese rígida da fratura com placa bloqueada,  por abordagem posterior (Figura 11).

Retomou período de reabilitação em Fisioterapia, após 1 semana de operada, com evolução progressiva do arco de mobilidade e recuperação completa aos 3 meses de osteossíntese (Figura 12).

DISCUSSÃO

A ocorrência de fraturas atraumáticas do acrómio após AIO, é uma entidade pouco frequente, de difícil diagnóstico e associada a uma morbilidade  importante6,9,10,11,12.

Na sua etiologia, a fadiga óssea crónica e consequente fratura de stress é a mais aceite, condicionando dor, insuficiência do músculo Deltoide e perda funcional secundária6,17.

Dentro dos vários fatores de risco teorizados na literatura, a condição de osteoporose e colocação de parafuso superior da metaglene demasiado comprido e na direção da base da espinha da omoplata, são aqueles que poderiam favorecer a ocorrência deste tipo de fratura atraumática6,12,13,14,15. Nenhum deles se constatou neste caso clínico.

A classificação de Levy é a mais consensual nestes casos e permite a distinção de 3 tipos de fratura6,16(Figura 7), sendo a descrita neste caso do tipo II, a segunda mais frequente6.

Em caso de suspeição clínica a realização de T.C. é, na nossa opinião, obrigatória.

Embora as fraturas coaptadas possam ser submetidas a tratamento conservador, a taxa de pseudoartrose atinge os 50% a 75%, sendo na nossa opinião  questionável e obrigando a um rígido controlo clínico e radiológico destes pacientes6,12.

A alternativa cirúrgica está especialmente recomendada em fraturas descoaptadas, não existindo nenhum consenso sobre qual a técnica de osteossíntese mais eficaz6,10,11,12,13.

O prognóstico final nestes casos é habitualmente mau, independentemente da opção de tratamento6,9,10.

Os autores consideram que este caso particular, tendo sido o único diagnosticado na sua larga casuística de AIO primárias realizadas, culminou num resultado funcional muito satisfatório.

Apesar de se tratar de uma entidade frequentemente associada a um mau prognóstico funcional final, os autores consideram que a brevidade no seu  diagnóstico e a estabilização rígida precoce destas fraturas, poderão vir a proporcionar um bom resultado.

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