• English
  • English
Volume 29, Fascículo III   Tromboembolismos venosos em doente com fratura proximal do fémur
Tromboembolismos venosos em doente com fratura proximal do fémur
Tromboembolismos venosos em doente com fratura proximal do fémur
  • Caso Clínico

Autores: Filipe Medeiros; Filipe T. Sousa; Rita Jerónimo; Álvaro Botelho
Instituições: Serviço de Ortopedia, Centro Hospitalar Universitário do Algarve, Portimão
Revista: Volume 29, Fascículo III, p231 a p238
Tipo de Estudo: Estudo Terapêutico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2019-04-16
Revisão: 2021-04-30
Aceitação: 2021-05-17
Publicação edição electrónica: 2022-04-29
Publicação impressa: 2022-04-29

INTRODUÇÃO

Estima-se que 90% das fraturas da extremidade proximal do fémur ocorram em doentes com mais de 65 anos e com várias comorbilidades prévias, o que naturalmente influencia o tratamento e prognóstico destes doentes. Desta forma, mesmo com tratamento adequado, estes pacientes têm altas taxas de morbilidade, alcançando taxas de complicações consideráveis, em cerca de 20%1. O risco do desenvolvimento de trombose venosa profunda (TVP) em pacientes hospitalizados é consideravelmente alto, nomeadamente em pacientes de trauma ou submetidos a cirurgia ortopédica (5-63%)2. O posicionamento do membro durante a intervenção, o edema localizado e as limitações à mobilidade no pós-operatório imediato contribuem para a estase venosa com a consequente redução do fluxo sanguíneo. Também a reação térmica secundária ao uso do cimento e a hemorragia podem reduzir os níveis de antitrombina III, permitindo assim a formação e crescimento do trombo1. Estudos prévios relatam uma incidência de TVP aumentada em pacientes idosos com fratura da anca. O diagnóstico pré-operatório realizado por meios imagiológicos varia de 2,6 a 17,3%, e que pode ascender a 62% particularmente quando a cirurgia é atrasada 2 a 3 dias3. Possivelmente, a tromboembolia pulmonar (TEP) é a complicação mais temida do tromboembolismo venoso (TEV), mas a embolização para outra área anatómica também pode ocorrer1.

A profilaxia do TEV e da TEP nas cirurgias ortopédicas continua a ser tema de discussão pela necessidade de prevenção de complicações trombóticas, mas também pelo cuidado de minimizar os riscos de hemorragia inerentes. Diversos estudos revelam que grupos submetido à profilaxia têm menores taxas de TVP comparados com grupos placebo4. Esta realidade tem criado orientações clínicas em vários países, exigindo a adoção de mecanismos de proteção a pacientes de risco. Deste modo, é consensual que a profilaxia da TVP é imprescindível nos procedimentos ortopédicos, contudo, há doentes com acréscimo de fatores de  riscos e cujas estratégias de profilaxia são mais difíceis de se estabelecer.

CASO CLÍNICO

O caso relata uma paciente do género feminino, 93 anos, internada em fevereiro de 2017 por fratura subtrocantérica femur esquerdo (Figura 1) no serviço de Ortopedia. Como antecedentes pessoais a doente apresentava hipertensão arterial, fibrilhação auricular, insuficiência cardíaca  congestiva, hipotiroidismo e trombocitose crónica em estudo. A sua medicação habitual era furosemida 40mg, levotiroxina 0,1mg, trimetazidina 35mg, ácido acetilsalicílico (AAS) 150mg, nitrolicerina transdérmica 5mg e valsartan/hidroclorotiazida 160/12,5 mg. A doente desconhecia alergias.

Enquanto aguardava otimização clínica para o tratamento cirúrgico desenvolveu quadro de isquemia aguda embólica do membro superior e inferior direitos. Realizou eco-doppler que relatava “a existência de oclusão de características recentes da extremidade distal da artéria braquial com extensão à sua bifurcação e segmentos proximais das artérias radial e cubital (Figura 2) e oclusão de características agudas em território aterosclerótico do membro inferior direito (artéria femoral superficial).” Desse modo, foi transferida para o serviço de Cirurgia Vascular e submetida a tromboembolectomia via umeral e femoral, com recuperação de pulsos, melhoria de perfusão dos membros e resolução de queixas. A doente foi transferida novamente para o serviço de Ortopedia, a realizar dose terapêutica de enoxaparina, tendo sido intervencionada em março, com redução cruenta e osteossíntese com placa proximal do fémur de ângulo fixo. O período pós-operatório decorreu sem intercorrências, tendo alta referenciada para seguimento em consulta externa.

Retomou a sua medicação domiciliária mais 40 mg de enoxaparina durante 1 mês. Após 1 ano de seguimento, a doente tolera carga total com dor residual, apresenta sinais de consolidação óssea radiológica e não ocorreram outras complicações.

DISCUSSÃO

Os fenómenos tromboembólicos representam as complicações mais comuns nas cirurgias ortopédicas. São considerados a maior causa de morte nos três primeiros meses após a operação, o que corresponde a mais de 50% da mortalidade pós-operatória5. A maioria dos trombos desenvolve-se possivelmente no sistema venoso profundo dos músculos da perna, ascendendo posteriormente.

Cerca de 80% dos trombos são provenientes do membro operado, podendo até 20% das vezes ter origem no outro membro inferior5. Há escassos relatos na literatura sobre a embolização sintomática para os membros superiores. Neste caso, verifica-se a existência de trombos sintomáticos no braço e perna simultaneamente, e contralaterais à lesão, o que enfatiza a raridade deste caso. Na sua maioria, as colusões da perna são pequenas e clinicamente  insignificantes. Da mesma forma, a trombose venosa proximal pode ser não oclusiva e assintomática, sendo que em alguns casos haverá resolução  espontânea sem efeitos adversos5. Estima-se que mais de 15% dos doentes com trauma desenvolvam TVP apesar da profilaxia tromboembolica1. A conclusões semelhantes chegou Lieberman et al., que estudou 644 pacientes idosos em reabilitação após cirurgia de fratura da anca e que diagnosticou  TVP em 39 doentes por eco-doppler apesar da tromboprofilaxia6. Num estudo de 96 pacientes com fratura intertrocantérica ou do colo do fémur foi realizada venografia aos membros inferiores. O exame foi bilateral, realizado entre o sexto e o décimo dia após a cirurgia (osteossíntese ou hemiartroplastia). A venografia foi positiva em 47,9% mas apenas 9 desses pacientes tinham sintomas e sinais de TVP7. A adiamento destas cirurgias acarreta riscos sinergéticos, o que se verificou neste caso em particular pela não realização da cirurgia de forma urgente. Smith et al, estudou 101 pacientes idosos que foram operados após 24 horas da fratura da anca. Todos os pacientes fizeram profilaxia anticoagulante e todos foram estudados relativamente a sintomas ou sinais de TVP, bem como foram submetidos a ecografia com doppler antes da cirurgia. Apesar da clínica negativa em todos os doentes, a ecografia detetou TVP em 10  doentes; e apesar da ecografia negativa, 2 doentes desenvolveram TEP. A média de dias até à cirurgia em doentes que desenvolveram TVP (5,7 dias) foi  diferente dos que não desenvolveram (3,2 dias). A incidência aumentou em 14,5% no atraso da cirurgia de um dia, até 33% quando o atraso foi superior a uma semana (p=0,021). Portanto, há uma correlação direta entre o atraso na cirurgia e a incidência de TEV nestes doentes, que apresentam um risco elevado (2,32 a 3,71 vezes) de desenvolver doença tromboembólica apesar da profilaxia8, situação muitas vezes negligenciada na realidade ortopédica nacional.

Há diferentes fatores predisponentes a TEV que se deve ter em conta, sejam relacionados com os antecedentes pessoais ou com o próprio evento  traumático (Figura 3). Para a identificação desses fatores, tem sido cada vez mais enfatizada a utilização do Score de Caprini, onde se procura  quantificar o risco, mediante uma pontuação atribuída a cada elemento presente9,10. O risco de TEV é muito elevado na cirurgia ortopédica major,  nomeadamente na cirurgia da fratura da anca. Por este motivo, independentemente dos fatores de risco, o doente com fratura da extremidade proximal do fémur está recomendado a efetuar tromboprofilaxia desde que não existam contra-indicações2,10,11.

A estratégia mais simples de prevenção da estase venosa e da TVP é a deambulação precoce. Quando possível, está associada a um retorno precoce à vida quotidiana, menor tempo de internamento, menores complicações e mortalidade5. Em doentes com indicação para realizar profilaxia do TEV que tenham simultaneamente risco de hemorragia deve-se optar por métodos profiláticos mecânicos. As meias elásticas de compressão graduada e a compressão pneumática intermitente nos membros inferiores ou pés comprovaram ser eficazes mesmo em monoterapia, porque aumentam a velocidade do fluxo venoso e reduzem a estase venosa2,11. No entanto, em doentes sem risco hemorrágico deve-se utilizar preferencialmente a profilaxia farmacológica11. Na profilaxia do TEV em cirurgia de fraturas proximais do fémur está recomendada a heparina de baixo peso molecular (HBPM)4,10. Há guidelines que recomendam como alternativas fondaparinux, HNF, varfarina, e AAS, com respetivo menor grau de evidência4,10,11. O fondaparinux não  possui efeito sobre as plaquetas razão pela qual é um fármaco útil no pós-operatório10, e preconizado em algumas orientações clínicas como a melhor alternativa à HBPM4,11. A varfarina interage com vários fármacos e alimentos, tem uma janela terapêutica estreita e ação paradoxal pró-trombótica inicial5, não sendo recomendado como tratamento de primeira linha em pacientes hospitalizados2,4 ou em ambulatório, exceção feita se já fizer parte da sua medicação habitual11. O uso de AAS como agente profilático para o TEV é controverso5. Apesar de ser mais eficaz que o placebo na profilaxia do TEV, não é recomendada a sua utilização como método profilático em cirurgias ortopédicas4,10,11. Os antiagregante plaquetários são considerados essenciais na prevenção da trombose arterial mas podem representar um risco acrescido aos  procedimentos ortopédicos major. Desta forma, se o risco de hemorragia for demasiado elevado, a terapia antiplaquetária suspensa deve ser reintegrada logo que possível11. O rivaroxabano e o dabigatrano, são considerados novos anticoagulantes orais que tem sido extensamente estudados5. Tem sido reportada eficácia semelhante na prevenção da TEV ou óbito, e efeitos adversos idênticos, nomeadamente a nível hemorrágico e gastrointestinal em doentes submetidos a artroplastias, mas não estão suficientemente estudados ou recomendados em doentes com fratura da anca4.

Neste caso em concreto, usou-se a combinação de meias compressivas com HBPM, sendo esta a estratégia profilática efetiva mais aceite para  pacientes com alto risco2. A HBPM pode ser iniciada antes ou depois da cirurgia. Se for iniciada antes, a última dose deve estar distanciada da cirurgia de  pelo menos 12h, podendo ser reiniciada 6-12h após a intervenção cirúrgica10,11. No nosso caso a HBPM foi administrada na admissão da doente, tal como está preconizado. Os outros fármacos que não a HBPM só devem ser iniciados depois da cirurgia. O período de profilaxia mínimo é de 10 a 14 dias, e idealmente 28-35 dias após a alta4,10,11, pelo pico de risco mais tardio do que se pensava inicialmente8. Em doentes com IMC > 30Kg/m2, a dose profilática deve ser prescrita numa base individual na dose de 0.5mg/Kg de peso. Em doentes com baixo peso  (mulheres <45Kg ou homens <57Kg), a dose de 40 mg deve ser reduzida para 20 mg10. No caso clínico apresentado, e pelos antecedentes de risco da doente, devia ter sido ponderada a dosagem de 60mg ou 40mg, em posologia bidiária, para uma profilaxia mais adequada. Contudo, esta decisão torna-se  controversa em relação à dosagem e posologia, em que a literatura é escassa. Um estudo recente com 92 pacientes com fratura do colo do fémur revela fatores clínicos que foram considerados como preditivos para o screening pre-operativo de TVP. Obtiveram uma incidência de TVP de 16,3% (n=15) e concluiram que os doentes com Score de Caprini ≥12 devem ser rastreados com eco-doppler antes da  cirurgia. Os pacientes com score de Wells 0-1 tinham risco baixo de desenvolver TVP, podendo a cirurgia ser realizada logo que possível3. A colocação de filtro na veia cava inferior num doente com fratura da anca e diagnóstico de TVP pré-operatório é considerado um método eficaz, e uma alternativa aos doentes em que esteja contra-indicada a terapêutica farmacológica anticoagulante2,3. Não se tem verificado complicações tromboembólicas e pode ser recomendado o seu uso quando há atraso na realização destas cirurgias em doentes com risco de fazer profilaxia farmacológica7.

CONCLUSÃO

Apesar de existirem múltiplas guidelines sobre a profilaxia trombótica para a população em geral, na prática diária lidamos com doentes com  características únicas, comorbilidades próprias, e cuja generalização dessas normas é de difícil adaptação. Assim sendo, a ausência de critérios  fidedignos atuais para estratificar populações de risco, levanta mais dúvidas sobre este tema, sugerindo que mais estudos devam ser realizados  para orientações práticas neste grupo de pacientes.

Referências Bibliográficas

1. Carpinteiro P. Complications of hip fractures: A review. World J Orthop. 2014 Sep 18; 5 (4): 402-411

2. Paydar Shahram. Management of Deep Vein Thrombosis (DVT) Prophylaxis in Trauma Patients. Bull Emerg Trauma. 2016; 4 (1): 1-7

3. Luksameearunothai K. Usefulness of clinical predictors for preoperative screening of deep vein thrombosis in hip fractures. BMC Musculoskeletal Disorders. 2017; 18: 208

4. Falck-Ytter Y. Prevention of VTE in Orthopedic Surgery Patients. Antithrombotic Therapy and Prevention of Thrombosis, 9th ed. Chest. 2012; 141 (2): 278-325

5. Leme L. Profilaxia do tromboembolismo venoso em cirurgia ortopédica. Rev bras ortop. 2012; 47 (6)

6. Lieberman DV. Proximal deep vein thrombosis after hip fracture surgery in elderly patients despite thromboprophylaxis. Am J Phys Med Rehabil. 2012; 81 (10): 745-750

7. Chotanaphuti T. Incidence of deep vein thrombosis in postoperative hip fracture patients in Phramongkutklao Hospital. Incidence of deep vein thrombosis in postoperative hip fracture patients in Phramongkutklao Hospital. 2005; 88 (3): 159-163

8. Smith EB. Delayed surgery for patients with femur and hip fractures-risk of deep venous thrombosis. J Trauma. 2011; 70 (6): 113-116

9. Alves CP. Tromboembolismo venoso - Diagnóstico e tratamento. Sociedade Portuguesa de Cirurgia. Capítulo de Cirurgia Vascular; 2015.

10. Amaral C. Recomendações para Profilaxia do Tromboembolismo Venoso em Anestesia e Cirurgia no Doente Adulto: Recomendações Peri - operatórias para Profilaxia do Tromboembolismo Venoso. Sociedade Portuguesa de Anestesia - Guia de Concenso. 2014;

11. George F. Profilaxia do Trombo Embolismo Venoso em Ortopedia. Normas da DGS. 2012;

   TOPO    Topo