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Volume 29, Fascículo III   Um caso de dor no calcanhar do atleta. A rotura da fáscia plantar
Um caso de dor no calcanhar do atleta. A rotura da fáscia plantar
Um caso de dor no calcanhar do atleta. A rotura da fáscia plantar
  • Caso Clínico

Autores: Joana Páscoa Pinheiro; Lurdes Rovisco Branquinho; Ricardo Pereira Dias; João Páscoa Pinheiro
Instituições: Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Centro Hospital Universitário de Coimbra; Serviço de Ortopedia do Centro Hospital Universitário Lisboa Norte
Revista: Volume 29, Fascículo III, p239 a p245
Tipo de Estudo: Estudo Diagnóstico
Nível de Evidência: Nível V

Submissão: 2021-05-15
Revisão: 2021-08-01
Aceitação: 2021-08-31
Publicação edição electrónica: 2022-04-29
Publicação impressa: 2022-04-29

INTRODUÇÃO

A fáscia plantar (FP) é uma estrutura de tecido conjuntivo espesso com origem no tubérculo medial do calcâneo e inserção ao nível das falanges proximais1,2. As lesões da FP são frequentes em atletas cujo gesto dominante inclui a corrida e o salto, podendo também ocorrer espontaneamente na população em geral especialmente em indivíduos com pé plano e calcâneo valgus, obesos e/ou sedentários3.

A fascite plantar é referida como a causa mais comum de patologia da fáscia e caracteriza-se por dor e espessamento mais prevalente ao nível da sua inserção proximal, estando descrito que a sua incidência na comunidade é de cerca de 10%4,5. A evolução do processo inflamatório condiciona fragilidade estrutural promovendo degenerescência, microrroturas ou mesmo rotura macroscópica (parcial ou completa) do tecido fascial6,7.

Neste caso clínico apresentamos um doente com inflamação recorrente da FP que durante um gesto explosivo em propulsão do corpo, numa competição de basquetebol descreve uma dor intensa e incapacitante para a marcha na região plantar do pé direito.

CASO CLÍNICO

AAMG do género masculino, de 34 anos, IMC 29,5 kg/m2 praticante de basquetebol não profissional(6 horas de treino por semana e competição ao fim de semana) recorreu à consulta por dor mecânica a nível do retro pé com incapacidade para a marcha. O doente refere que 24 horas antes, durante a prática desportiva e após um salto, sentiu uma dor intensa tipo “rasgão” ficando, desde logo, impossibilitado de realizar carga axial.

Questionado acerca de história pregressa refere nos dois últimos anos diversos períodos de dor na região do calcanhar, mantidos por 4 a 6 semanas, de caraterísticas mecânicas, alguns descritos apenas na prática desportiva e outros com limitação em atividades de vida diária. Foi habitualmente tratado com a aplicação local de gelo, administração de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), ortótese plantar (palmilha moldada) e restrições desportivas diversas. Com o controlo do quadro nociceptivo retomava o treino e a competição. Não existem antecedentes de doença reumatismal, metabólica ou distúrbios do colagénio.

Ao exame objetivo, constatou-se edema e equimose da região plantar do pé direito (Figura 1). Referia dor na dorsiflexão ativa e ativa-resistida, no alongamento estático e dor à palpação da planta do pé direito, especialmente ao nível do trajeto distal da FP. No exame etoscópico verificou-se pé plano grau 1. O restante exame objetivo não revelou alterações relevantes. Foi realizada ecografia que revelou espessamento e hipoecogenicidade da fáscia plantar com área focal de maior heterogeneidade ecoestrutural na sua região proximal, sugestiva de rotura, associando-se infiltração edematosa peri-lesional. A ressonância magnética (RM) confirmou a presença de uma rotura de espessura completa na inserção calcaneana da fáscia plantar acompanhada de ligeira retração distal, notando-se um gap com 9 x 11 mm (longitudinal x transversal) com acentuado edema perifascial e das partes moles adjacentes (Figura 2). Observou-se também uma redução focal da espessura da fáscia plantar numa localização mais distal, a cerca de 38mm da inserção no calcâneo, medindo 6 x 3 mm (longitudinal x transversal)compatível com rotura de espessura parcial (Figura 3).

O doente iniciou terapia conservadora, inicialmente com repouso segmentar, descarga com duas canadianas de apoio antebraquial, crioterapia estática, AINEs e posteriormente programa de reabilitação funcional (agentes físicos e técnicas cinesiológicas). Ao fim de seis semanas de tratamento conservador, o doente reiniciou os treinos de basquetebol estando apto para retoma de atividade competitiva ao fim de 12 semanas, sem queixas relevantes.

DISCUSSÃO

A rotura da FP é uma lesão incomum, pouco descrita na literatura, que necessita de tratamento específico, mas que é muitas vezes é subdiagnosticada na pática clínica2-4. Estas lesões podem ocorrer no contexto de trauma e estão associadas a movimentos de flexão plantar repetidos que resultam em lesões de “overuse” com microtraumas da FP, especialmente em atletas cuja atividade implique saltos, impactos ou corrida. Podem ocorrer de forma espontânea como resultado de processos inflamatórios repetidos ou de injeção local com corticoide3. Sellman reportou o caso de 37 pacientes com rutura da FP, todas elas associadas a injeção prévia de corticoides8. Também Leach et al., descreveu o caso de seis roturas da FP, cinco relacionadas com injeção de corticoides9. O atleta por nós apresentado neste caso clínico em nenhum momento da sua carreia foi tratado com injeção de corticoides, estando a sua lesão muito provavelmente relacionada com os repetidos episódios de inflamação da FP e o rápido retorno à atividade física após estas lesões, sem existir um período de repouso durante o tratamento.

A clínica típica de dor plantar súbita e intensa durante prática de atividade física em associação com um exame objetivo que demonstre incapacidade para a marcha, equimose plantar, dor à dorsiflexão e palpação da planta do pé, especialmente ao nível do arco plantar, deve fazer suspeitar de rotura da fáscia plantar. A história deve incluir o conhecimento do índice de massa corporal, as caraterísticas da atividade desportiva, a história pregressa, identificando episódios prévios de dor na FP, patologias associadas (metabólicas, hormonais, reumatismais) e história de infiltração de corticoides4,10.

O diagnóstico diferencial deve excluir a fratura de stress do calcâneo, síndromes de entrapment (ex. ramo calcâneo medial do nervo tibialis posterior e síndrome túnel társico), doença de Baxter, tendinose(ex. tibialis posterior, flexor hallucis longus, flexor hallucis brevis ou peroneus longus), artropatias inflamatórias, entre outras,5,11. O estudo ecográfico é o exame de 1ª linha pela sua acessibilidade, baixo-custo e acuidade diagnóstica permitindo confirmar a presença de patologia da fáscia plantar e excluir outros diagnósticos diferenciais. A fascite plantar traduz-se ecograficamente por espessamento e hipocogenicidade da FP e as roturas por uma perda completa ou parcial da continuidade das fibras da FP7. O gap resultante é muitas vezes preenchido por componente inflamatório e hemorrágico, aspeto que pode dificultar a deteção da área de rotura por ecografia7. A RM é importante para a confirmação do diagnóstico e determinação da gravidade da rotura (parcial ou completa) bem como para uma ponderação facilitada da necessidade de intervenção cirúrgica6,7. A semiologia das roturas da FP na RM consiste em perda do habitual hipo-sinal da fáscia plantar que é substituído por foco de hiper-sinal com intensidade líquida no local da rotura, que pode atingir toda a espessura da fáscia (rotura completa)ou apenas uma parte da espessura (rotura parcial)12,13. Na fascite plantar existe espessamento da FP e hipersinal intra-fascial mas a intensidade do sinal é inferior à do líquido, permitindo assim distinguir as alterações de fascite daquelas atribuíveis a roturas agudas. Este caso, para além da sua raridade, tem a particularidade de a RM ter permitido detetar dois locais e tipos de rotura distintos da FP reforçando o conceito de que muitas roturas agudas ocorrem sobre uma FP já previamente fragilizada.

A documentação de uma rotura da FP através de imagem é essencial uma vez que o seu tratamento difere do da fascite plantar7,12-13. O tratamento da rotura da FP é habitualmente conservador sendo esta decisão decorrente da gravidade da lesão. Este consiste em terapêutica analgésica e antiinflamatória, imobilização do segmento (relativa ou absoluta segundo a gravidade) e pela introdução de agentes físicos e técnicas cinesiológicas. A intervenção cirúrgica fica reservada para casos de rotura mais extensa ou com complicações associadas3,8.

A retoma do exercício físico, varia entre as 3 e as 16 semanas, conforme a gravidade lesional e a natureza das opções terapêuticas. O tempo decorrido entre a lesão e o início do programa terapêutico é também importante6,14.

CONCLUSÃO

A rotura da FP é uma lesão pouco descrita na literatura que ocorre em atletas praticantes de desportos com alto impacto, pliometria e corrida explosiva. As alterações estáticas do pé predispondo a processos inflamatórios repetidos da FP acrescentam o risco lesional.

O diagnóstico precoce é essencial para identificar a melhor decisão terapêutica e limitar as sequelas estruturais, muitas vezes causa de dor e limitação funcional de longa duração, ou mesmo o comprometimento do futuro desportivo do praticante.

Referências Bibliográficas

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