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Volume 29, Fascículo IV   Revisão dos fatores de risco de Displasia do Desenvolvimento da Anca - tempo para atualização dos critérios de referenciação?
Revisão dos fatores de risco de Displasia do Desenvolvimento da Anca - tempo para atualização dos critérios de referenciação?
Revisão dos fatores de risco de Displasia do Desenvolvimento da Anca - tempo para atualização dos critérios de referenciação?
  • Artigo Original

Autores: Gabriela Botelho; Mariana Simões; Inês F. Ferreira; Joana Arcangelo; Susana Norte; Pedro Jordão
Instituições: Serviço de Ortopedia Infantil, Hospital de Dona Estefânia; Serviço de Pediatria, Centro Hospital de Setúbal; Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar Barreiro Montijo; Serviço de Pediatria, Hospital do Espírito Santo de Évora
Revista: Volume 29, Fascículo IV, p327 a p334
Tipo de Estudo: Estudo Retrospetivo
Nível de Evidência: Nível IV

Submissão: 2022-01-30
Revisão: 2022-07-30
Aceitação: 2022-09-05
Publicação edição electrónica: 2022-12-22
Publicação impressa: 2022-12-22

INTRODUÇÃO

A Displasia do Desenvolvimento da Anca (DDA) é uma patologia caracterizada por displasia ou malformação do acetábulo, que conduz a uma  incapacidade de contenção da cabeça do fémur na sua localização normal1,2.

Esta abrange um espectro de alterações anatómicas, desde a displasia acetabular ligeira sem instabilidade, até à luxação da anca redutível ou irredutível3. Esta alteração pode ser fisiológica ou patológica, sendo que esta última se define como achados ecográficos tipo II, III ou IV na classificação de Graf ou uma deslocação irredutível da anca4.

Está descrita uma incidência de 1-2 casos em cada 1.000 nados-vivos. As duas ancas podem estar envolvidas em até 37% dos doentes5.

Tem uma etiologia multifactorial e estão descritos na literatura vários fatores de risco associados à ocorrência de DDA, nomeadamente o sexo feminino, a primiparidade, a prematuridade, a multiparidade, a macrossomia, a presença de oligohidrâmnios, a apresentação pélvica no terceiro trimestre e história familiar de DDA. Devem ser também pesquisados sinais clínicos de instabilidade da articulação coxo-femural como o sinal de Ortolani, sinal de Barlow, sinal de Galleazi, assimetria das pregas inguinais e limitação da abdução das ancas6,7. Os fatores de risco  e os dados do exame objetivo devem ser ativamente procurados na maternidade e nas consultas de vigilância de saúde infantil.

O diagnóstico precoce desta patologia é possível e, quando o tratamento é iniciado atempadamente, pode não ser necessária intervenção cirúrgica.

A DDA é responsável por 29% das cirurgias de substituição da anca em doentes até aos 60 anos de idade8. O atraso no diagnóstico desta patologia leva a que sejam necessários tratamentos mais complexos, com maior taxa de falibilidade, pelo que o diagnóstico precoce é essencial.

Os programas de rastreio são variáveis entre países, sendo que o diagnóstico precoce depende principalmente de dois fatores: critérios de risco  identificáveis e a existência de programa de rastreio nacional. Em Portugal, atualmente, a Sociedade Portuguesa de Ortopedia Pediátrica (SPOP)  recomenda o rastreio imagiológico a todas as crianças com sinais clínicos de instabilidade da anca ou nas quais seja identificada a presença de fatores  de risco para DDA9.

O objetivo deste estudo foi a revisão dos critérios de referenciação, nomeadamente dos fatores de risco identificáveis e de dados do exame objetivo, de forma a tentar otimizar a identificação precoce de DDA e, simultaneamente, os recursos disponíveis.

MATERIAL E MÉTODOS

Foi conduzido um estudo retrospetivo, descritivo e comparativo.

Foram consultados os processos clínicos de doentes seguidos em consulta de patologia da anca, num hospital terciário de referência, com avaliação durante o ano de 2019. Foram selecionados os doentes com o diagnóstico de DDA ou referenciados para avaliação por suspeita da mesma. As variáveis analisadas foram o género, presença de diabetes materna, de antecedentes familiares de DDA, gemelaridade, primogénito, prematuridade, primogenitura,  presença de oligohidrâminios, apresentação pélvica no terceiro trimestre de gravidez, macrossomia, malformações concomitantes.

Em relação à sintomatologia foi considerada a sua lateralidade, a presença dos sinais de Ortolani, Barlow, simultânea e individualmente, a presença  do sinal de Galeazzi, de assimetria de pregas e a limitação da abdução das ancas.

O diagnóstico de DDA foi confirmado pelo método ecográfico de Graf até aos quatro meses e posteriormente por radiografia da bacia.

A análise estatística foi realizada através do programa SPSS®, nomeadamente análise de frequências absolutas e relativas e realização do teste do Chi-quadrado para variáveis não paramétricas. Foi considerada a presença de significância estatística para um valor p < 0,05.

RESULTADOS

Durante o período do estudo foram avaliados 326 doentes com DDA suspeita ou confirmada. A maioria (74,5%) era do sexo feminino. A média de idades foi de dois anos.

Destes, 208 doentes (63,8%) foram diagnosticados com DDA. A maioria era também do sexo feminino (72,4%), com uma média de idades sobreponível de dois anos. A idade da primeira consulta foi, em média, de dois meses. As características deste subgrupo de doentes estão descritas na Tabela 1.

A análise comparativa do grupo de doentes com DDA confirmada por estudo imagiológico com o grupo de doentes com DDA não confirmada, mostrou que, no que diz respeito aos fatores de risco, o sexo feminino, a presença de antecedentes familiares de DDA e a apresentação pélvica no terceiro trimestre  estavam associados ao diagnóstico de DDA. Em relação aos dados do exame objetivo, verificou-se que a presença dos sinais de Ortolani e Barlow,  individualmente ou em conjunto, a limitação da abdução das ancas, e a presença do sinal de Galleazi estavam também associados à presença de DDA  (Tabela 2).

A limitação da abdução das ancas estava presente em 65 doentes, com uma mediana de idades de três meses. De realçar que 58% dos doentes apresentava  idade inferior a quatro meses e, por isso, ainda eram elegíveis para rastreio ecográfico. Em 20% dos casos, a limitação da abdução era bilateral. O sinal de Galleazi estava presente em doentes com uma média de idades de 56 meses, mínimo oito dias e máximo de 18 meses. Este sinal mostrou uma  especificidade de 97% e um valor preditivo positivo de 92,9% (Tabela 3).

Na nossa amostra a presença de oligohidrâmnios, ou de outras malformações concomitantes (por exemplo: deformidades do pé ou torcicolo congénito) não se correlacionou com a presença de DDA.

A gemelaridade e a prematuridade não estavam associadas, com significância estatística, à presença de DDA.

DISCUSSÃO

A maioria dos doentes referenciados para avaliação de DDA tiveram confirmação imagiológica do diagnóstico.

Nestes doentes, identificámos maior associação com DDA o sexo feminino, a história familiar de DDA e a apresentação pélvica no terceiro trimestre. No protocolo da SPOP não está incluído o sexo feminino, como critério de risco e indicação para rastreio, enquanto a presença de antecedentes  familiares e a apresentação pélvica estão.

A presença de outras malformações concomitantes não se correlacionou com a presença de DDA, embora estas características clínicas estejam  integradas nos fatores de risco a considerar para rastreio imagiológico.

As deformidades do pé nem sempre estão incluídas nos programas de rastreio. Paton et al. sugerem que doentes com pé boto, não devem ser considerados  como tendo fator de risco para DDA10. Pelo contrário, Håberg et al, mostram associação de malformações do pé com DDA, nomeadamente,  em casos de pé boto, de calcaneovalgus congénito e também uma associação com a presença de metatarso adductus, embora esta última menos  importante11. Relativamente ao torcicolo congénito, na literatura está descrita a sua associação à DDA, com uma incidência de até 20%12. Na nossa amostra, apenas oito doentes apresentaram as malformações acima citadas, o que pode explicar a assimetria face aos resultados da literatura.

A presença de oligohidrâmnios deve ser pesquisada nas ecografias pré-natais e deve ser valorizada a sua presença de forma consecutiva e não isoladamente13. Este fator de risco não está incluído de uma forma consistente nos rastreios dos vários países. No nosso estudo, não se verificou associação com a presença de DDA, mas este dado foi apenas identificado em oito doentes o que pode justificar esta diferença.

Relativamente aos dados do exame objetivo de instabilidade da anca, observámos que a presença dos sinais de Ortolani e Barlow, de limitação à abdução das ancas, e a presença do sinal de Galleazi estavam positivamente associados à presença de DDA. No protocolo de rastreio da SPOP há apenas referência à identificação de sinais de instabilidade da anca, sendo porventura mais útil nomear esses sinais. Os resultados do nosso estudo indicam a sua presença em idades precoces, na janela temporal indicada para rastreio. Além disso, comparativamente aos sinais de Ortolani e Barlow, este sinal é mais facilmente pesquisável por médicos não ortopedistas infantis, de quem provêm a maioria das referenciações. Por esta razão, consideramos que a nomeação dos sinais clínicos de instabilidade da anca poderia ser incluída nas recomendações, de forma a melhorar o rastreio clínico pelos médicos referenciadores. Recomendamos uma atenção redobrada ao sinal de Galleazi, que no nosso estudo revelou uma elevada  especificidade.

A prevalência de assimetria das pregas é desconhecida, embora estudos sugiram a sua presença em 20-25% dos doentes com anca normal.

A assimetria das pregas isolada é um critério frequente de referenciação a consulta externa de ortopedia, contudo alguns estudos sugerem que este é um sinal pouco fidedigno de DDA patológica4,14. A assimetria das pregas isolada pode indicar displasia ligeira, mas nem todos estes quadros de displasia tiveram indicação para tratamento15. A assimetria de pregas pode ter várias localizações, incluindo pregas inguinais, glúteas e adutoras. Kang M et al, sugerem que a assimetria de pregas glúteas está mais associada com DDA do que as pregas ao nível da face interna da coxa16. No protocolo português não está explícita a localização da assimetria de pregas a valorizar. Na nossa amostra, a identificação de pregas assimétricas também não mostrou correlação com a presença de DDA, mas não pode ser analisada a localização anatómica das mesmas. Dado que este é um fator frequente de referenciação à consulta, seria interessante a realização de um estudo prospetivo multicêntrico para estudar a associação da assimetria das pregas isolada como fator de risco independente.

Por fim, uma palavra em relação aos “clicks” da anca identificados no exame objetivo. Não há consenso na literatura em relação a este achado ser considerado um fator de risco para DDA. Na Europa, ortopedistas pediátricos não consideram a presença de click na anca como critério de risco,  provavelmente pela sua experiência clínica permitir a distinção entre um click e uma anca instável16. Paton et al. sugerem que este achado, de forma isolada, não deve ser considerado critério de risco para DDA17. Por outro lado, Marson et al. advogam  a presença de uma percentagem não negligenciável de crianças referenciadas exclusivamente por este achado, com diagnóstico de DDA, mas este  estudo não inclui dados sobre o exame objetivo, nomeadamente a presença de sinais de Ortolani e Barlow18.

A abordagem em termos de rastreio nos vários países da Europa tem critérios variáveis, desde um rastreio universal até um rastreio seletivo, como em  Portugal, considerando uma combinação de fatores de risco e critérios clínicos de instabilidade3. Não há consenso em relação aos timings adequados para o rastreio, contudo é aconselhado que o rastreio imagiológico seja realizado até às seis semanas, pois a laxidão ligamentar fisiológica pelo estrogénio materno desaparece nessa altura3.

As guidelines britânicas sugerem realização de rastreio apenas na presença de história familiar de DDA e apresentação pélvica durante o terceiro  trimestre da gravidez10. É realizado rastreio nos casos de gravidez gemelar apenas no contexto supracitado19.

Em relação às limitações do nosso estudo, o facto de se tratar de um estudo retrospetivo em que os dados utilizados foram recolhidos manualmente  através da revisão de processos clínicos de doentes, cujos registos nem sempre estavam completos e que, são seguidos por médicos diferentes, pode  ter impacto nos dados apresentados. Além disso, estavam frequentemente omissas dos registos clínicos informações relativas ao grau de DDA e à  localização das pregas assimétricas, o que impediu uma avaliação mais detalhada destes aspetos. Estava fora do âmbito do estudo a avaliação específica das primeiras consultas, da adequação da referenciação, do método imagiológico de diagnóstico utilizado e do tratamento instituído.

Os nossos resultados traduzem uma realidade local, muito embora referentes a uma consulta diferenciada e com elevado volume de referenciação. A otimização dos critérios de rastreio poderá ser pertinente para incluir novos dados, como nomear de forma mais clara os sinais de instabilidade da  anca, especificar a localização da assimetria das pregas e eliminar alguns critérios que isoladamente se têm mostrado menos importantes. Em relação aos fatores de risco, a literatura não é consensual pelo que são necessários mais estudos para estabelecer a adequação da sua inclusão ou não.

CONCLUSÃO

  • A DDA é uma doença de apresentação clínica heterogénea;
  • Num país em que o rastreio é seletivo é importante a adequação dos critérios de referenciação para otimizar o diagnóstico sem sobrecarregar os centros de referência;
  • O sinal de Galleazi mostrou associação à DDA, com sensibilidade e especificidade sobreponíveis aos sinais mais clássicos de instabilidade da anca;

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